Rewind, discos, tendências, situações

Passada a espuma dos dias da escolha das listas, importa pois também, além dos destaques, uma reflexão mais ponderada e devidamente filtrada também pela reaudição dos discos e os eventuais nexos que nalguns casos se tecem. Façamos pois ainda rewind de 2017.

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Krystian Zimerman: colossal interpretação de Schubert Amy T. Zielinski/Redferns

O final do ano nos media é tempo de escolhas e balanços: as personalidades, os acontecimentos, os “melhores”. Como sabemos no campo dos objectos artísticos e culturais predomina largamente a lógica do top ten nas diversas áreas, que aliás tem um inegável feedback no gosto dos leitores. Mas isso é também de algum modo uma uniformização de critério. Dou um exemplo das áreas que mais acompanho: se nas publicações de cinema vigora de facto a tradição dos “10 mais” isso já não sucede nas de música erudita, em que ou são destacados os discos considerados mais marcantes, independentemente do número, ou se opta por sectores, por exemplo música sinfónica, coral, vocal, de câmara, piano, etc. E mesmo esse tipo de escolhas mais diversificadas é insuficiente no tocante a um efectivo balanço, pois cabe também refletir e detectar tendências e situações.

Passada a espuma dos dias da escolha das listas, importa pois também, além dos destaques, uma reflexão mais ponderada e devidamente filtrada também pela reaudição dos discos e os eventuais nexos que nalguns casos se tecem. Façamos pois ainda rewind de 2017.

É impossível não começar por referir que se muito se destacaram dois discos com colossais interpretações de obras que são dos maiores monumentos do reportório canónico, as duas últimas Sonatas para Piano D.959 e D. 960 de Schubert por Krystian Zimerman (DG) e as Sonatas e Partitas para Violino Solo de Bach por Christian Tetzlaff (Ondine). Quando do exigentíssimo pianista polaco se temia que já não fizesse novas gravações, eis que ele ressurge nestas Sonatas ao nível dos maiores, de um Arthur Schnabel ou um Rudolf Serkin, enquanto o violinista alemão fez aos 50 anos a sua terceira (!) gravação desta catedral bachiana, com uma paleta expressiva, de cores e de rubato e uma destreza no manejo do arco que na Partita nº2 chega a ser alucinante. Interpretações ao nível destas sucedem muito de quando em quando — e foram logo duas num ano!

Outra obra bem conhecida que nos chegou “reinventada” foi a música de cena para o Sonho de uma Noite de Verão de Mendelssohn com John Eliot Gardiner dirigindo o seu Monteverdi Choir mas com a Orquestra Sinfónica de Londres, isto ainda antes de concluir a sua integral das sinfonias, com uma Sinfonia nº2Lobgesang” de altíssimo coturno (LSO Live, a etiqueta da própria orquestra). Mas no caso do Sonho trata-se de uma edição particularissima, feita em digressão em 2016, quando se assinalou o 4º centenário da morte de Shakespeare, incluindo excerptos da peça, de falas de Oberon, Titania, Puck, etc., muito engenhosamente pontuadas por extractos musicais, conferindo à obra uma teatralidade inédita e criando um maravilhoso ambiente onírico.

A propósito de Gardiner, Mendelssohn, LSO Live, quatro notas de relevo há a acrescentar. A 1ª diz respeito à própria etiqueta, pioneira entre as várias que eminentes orquestras agora têm: é que as suas edições incluem sempre um disco em Blue-ray e outro em Super Audio, SACD, mas ao preço corrente de um cd, o que não é nada menosprezável. A 2ª que foi também a LSO Live que publicou o mais exaltante disco de música contemporânea do ano, com Asyla. Trevot e Polaris de Thomas Adès, dirigida pelo próprio que, exímio conhecedor das potencialidades orquestrais, o é também enquanto excelente maestro, e não só das suas obras. O 3º para referir que Gardiner, com os seus Monteverdi Choir e English Baroque Soloists, e na sua editora, a Soli Deo Gloria, publicou uma magnífica nova gravação do Magnificat de Bach. A 4ª, enfim, para assinalar que além da conclusão do ciclo de Gardiner, houve também, não exactamente ao mesmo nível, mas bastante sólida, uma outra integral das Sinfonias de Mendelssohn com a Chamber Orchestra of Europe dirigida por Yannick Nézet-Séguin, o próximo director musical do Met (3 cds DG), além de que Pablo Heras-Casado prosseguiu também a sua integral. Fruto de coincidências, 2017 foi assim, de algum modo, um inesperado “ano Mendelssohn”.

Esta lógica de “ano X” ou “ano Y” mas em jeito comemorativo é um facto insistente, e não só, longe disso, na edição discográfica. Poderia esperar-se que fossem assinalados os 450 anos do nascimento de Monteverdi, mas outra efeméride se impôs: os 250 anos da morte do prolífero Telemann. Só caixas de edições comemorativas houve quatro e uma dezena de discos avulsos não foram por certo coisa fortuita. Haverá que falar com maior desenvolvimento desta avalanche mas refira-se já que os Concerti per molti stromenti pela Akademie für Alte Musik (Harmonia Mundi), Concertos para flauta de bisel e charamela por Giovanni Antonini e o seu Giardino Armonico (Alpha) e as 12 Fantasias para Flauta Solo por François Lazarevich (Alpha também) foram dos mais belos discos do ano.

E foi com Telemann que ocorreu um dos factos mais importantes do ano: pela 1ª vez uma realização musical “clássica” foi feita não para ser difundida em disco mas colocada na internet: são os 12 Quartetos Parisienses por Les Ambassadeurs, noutros tantos vídeos.

Sabemos, noutras áreas musicais, como temas ou álbuns inteiros são disponibilizados primeiro, e cada vez mais, no iTunes ou no Spotify, gratuitamente ou em paywall, com possibilidades de download ou não. E o download também já é muito praticado por alguns melómanos clássicos, diga-se que não sem viva irritação de alguns artistas (Krystian Zimerman, por exemplo, foi um dos que se queixou de ter transmitido à editora o desejo de gravar uma obra e de lhe dizerem: “ah, mas isso já está no youtube”, ou seja de alguém já o ter gravado e colocado em linha). E é possível encontrar na internet algumas pérolas, como esses magistrais espectáculos que foram o Don Carlo de Verdi encenado por Luca Ronconi e dirigido por Claudio Abbado, no Scala em 1977, ou a estreia da versão com os três actos completados da Lulu de Berg, pela dupla Chéreau/Boulez, na Ópera de Paris em 78, espectáculos que foram objecto de gravação e difusão televisiva internacional mas que misteriosamente nunca foram editados em dvd.

Só que, atenção, além propriamente das diferenças de suporte físico, as engenharias sonoras para um disco ou para a net têm significativas diferenças, e nesse tão importante aspecto poucas gravações foram de facto concebidas especificamente para a rede, como é o caso desta – e nesse sentido estes Quators parisiens de Telemann por Les Ambassadeurs foram certamente um dos factos mais marcantes do ano transcorrido.

Mas voltemos aos discos, na sua materialidade. Até agora falámos de obras do reportório canónico, mais ou menos conhecidas (as Fantasias de Telemann não são por certo tão recorrentes quanto as Sonatas e Partitas de Bach), ainda que no caso do Sonho de uma Noite de Verão por Gardiner de modo inédito. Sucedeu, todavia, que 2017 foi um ano bastante gratificante de discos originais, sejam eles frutos de trabalhos musicológicos ou de propostas de intérpretes. No primeiro caso há a referir Metamorfosi Trecento pelos Fonte Musica dirigidos por Michele Pasotti (Alpha), Stravaganza D’Amore! — O Nascimento da Ópera na Corte dos Medici pelo Ensemble Pygmalion e Raphaël Pichon (HM) ou o Requiem de Mozart na nova edição crítica de Pierre-Henri Dutron, dirigido por René Jacobs (HM também); no segundo o regresso de Rinaldo Alessandrini e do Concerto Italiano ao seu tão bem conhecido Monteverdi com Night, Stories of Lovers and Warriors (Naïve), Bach Privat, concebido por Andreas Steier (ainda Alpha) e o fabuloso Crazy Girl Crazy, primeiro disco de Barbara Hanningan na sua dupla qualidade de cantora e maestrina, com obras de Berio, Berg e Gershwin (mais outro da Alpha).

E se esta viagem discográfica começou no Trecento e com Hannigan chegou ao século XX, prossigamos já agora até à música mais contemporânea.

Já se disse: o mais exaltante disco foi o de Adès por Adès. Mas houve também o pungente Concerto para Violino, in memoriam Gareguin Aroutiounian de António Pinho Vargas (mpmp) e sobretudo grandes mestres americanos, The Late Works of Elliot Carter (Ondine), a maioria das obras tendo sido escritas quando o compositor, nascido no mesmo dia de Manoel de Oliveira, já tinha também mais de 100 anos, e dois cds admiráveis de pianistas virtuosísticos, um de Steven Osborne, com obras de Feldman e Crumb, incluindo do primeiro a última peça para o instrumento, Palais de Maris, outro de Marc-André Hamelin, só com a penúltima e mais longa peça de Feldman, For Benita Marcus (Hyperion ambos).

Como vem sendo hábito nos últimos anos o que não faltaram foram Edições, ou seja reedições retiradas dos fundos de catálogo, mas em 2017, mas além das dedicadas a Telemann não houve nenhuma monográfica de um compositor - ao contrário do que separadamente ou em conjunto, as etiquetas da Universal, DG e Decca, tinham feito nos dois anos anteriores - mas apenas de intérpretes segundo a fórmula já consagrada de “X (o intérprete) complete records on Y (a etiqueta)”. Não que algumas não sejam importantes, fazendo reconsiderar intérpretes subestimados ou conhecidos mas não tanto no seu percurso discográfico, mas chegou-se ao delírio de, de um arqui-conhecido Karajan ter saído a caixa de The Complete Recordings on Deutsche Grammophon and Decca com 355 cds (!!!). Mas para quê, céus? Se é para devotos do maestro esses já têm muitos desses discos, os outros passam ao lado.

A escolher uma caixa essa é Mstislav Rostropovich — Cellist of the Century — The Complete Warner Recordings (40 cds, 3 dvds), publicada no 10º aniversário da sua morte, e isto porque o título é enganador: com efeito, para além dos discos para as marcas hoje detidas pela Warner, EMI, Erato e Teldec, o mais precioso é o que provém dos Russian Archives, que têm abundantes raridades, o Concerto de Lopes-Graça por exemplo; há várias obras com mais que uma gravação, mas a edição tem as tais raridades e é cuidada, com um livrete de 200 páginas.

Mas nenhum rewind do ano pode ignorar a situação do mercado. Que cada vez as compras sejam feitas por via da Amazon já se sabe. A oferta online é incomparavelmente maior, mas não deixa de haver alguma melancolia com o desaparecimento das lojas, com o ocaso do gesto de ir andando entre as estantes e ficar atraído por este ou aquele disco desconhecido. Para ajudar ao naufrágio, a mais importante editora independente, a Harmonia Mundi (com as distribuidoras directa ou indirectamente a elas associadas), a que melhor abastecia o mercado com as novidades e fazia maior esforço de promoção, entrou em estado cataléptico, e uma major, a Sony, está misteriosamente em quase colapso; por exemplo, como há dois anos com Jonas Kaufman, foi em 2017 “buscar” à Decca outro tenor vedeta, Juan Diego Florez — pois bem, ou antes, pois mal, o disco de estreia na Sony, um recital Mozart, não será distribuído em Portugal! Faz isto algum sentido, desde logo em termos comerciais?!

Só faltava mesmo o contributo do Ministério da Cultura, através da IGAC, Inspeção Geral das Actividades Culturais. Como se já não bastasse o tempo de demora no selo necessário à colocação no mercado de dvds em geral, impôs uma sobretaxa, cuja imediata consequência é que a quase generalidade das distribuidoras e importadoras de dvds musicais deixou de colocar novidades no mercado português.

Valham-nos a Amazon e as muitas horas de audição, uma e outra vez, do que já temos, incluindo os diversos magníficos discos publicados em 2017.

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