Director do curso de Comandos processa chefe do Exército

O general Rovisco Duarte é acusado por um dos principais arguidos no processo das mortes de "manobra para 'salvar a face' do Exército”.

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Queixa-crime foi apresentada por um dos principais arguidos do inquérito às mortes no curso dos Comandos Rui Gaudêncio

O tenente-coronel Mário Maia, director do curso 127 dos Comandos e um dos principais arguidos do processo relativo à morte em 2016 dos dois recrutas Hugo Abreu e Dylan da Silva, apresentou uma queixa-crime contra o chefe de Estado-Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte. 

A participação criminal foi entregue à procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, em Agosto do ano passado, segundo consta do processo, consultado pelo PÚBLICO no Tribunal de Instrução Criminal. Concluída a fase de instrução, cujo início está previsto para 23 de Janeiro, os 19 acusados pelo Ministério Público saberão se vão a julgamento.

“A queixa é apresentada porque se verificou que o CEME ignorou uma denúncia feita em Fevereiro de 2017”, diz o advogado Alexandre Lafayette, em representação do tenente-coronel Maia.

A denúncia diz respeito ao facto de o coronel Dores Moreira (que foi comandante do Regimento dos Comandos até Junho passado) ter alegadamente entregue à investigação do Departamento de Investigação e Acção Penal um guião “falso” da chamada Prova Zero, que indicava que os instruendos poderiam beber até cinco litros de água por dia, quando na verdade o guião disponibilizado aos instrutores para a formação indicava que o limite seriam três litros.

A confirmar-se, a falsificação de documento teria por objectivo responsabilizar os instrutores do curso e não os altos oficiais, como o comandante Dores Moreira, pelo racionamento da água distribuída durante a prova, no início de Setembro de 2016, num contexto de calor extremo, e que provocou desidratação profunda em vários instruendos, que foram internados, e nos dois recrutas que viriam a morrer – Hugo Abreu e Dylan da Silva, ambos com 20 anos.

Carta enviada ao Presidente da República

É o que expõe o advogado na carta que envia à procuradora-geral da República e da qual dá conhecimento ao Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, ao primeiro-ministro António Costa, ao ministro da Defesa, José Azeredo Lopes, à juíza de instrução do processo e ao bastonário da Ordem dos Advogados.

Na carta, junta ao processo, refere "a sensação de a falsificação ter sido uma manobra para 'salvar a face' do Exército” e defende que “não se pode, nem se deve pactuar com a prática de crimes, com a agravante de se visar enganar o sistema de justiça (…)" apontando para os inferiores hierárquicos "o ónus da incompetência das chefias militares que, há muito, têm obrigação de saber que a logística de apoio à formação de militares dos Comandos tem falhas graves e inaceitáveis".

A defesa do tenente-coronel Maia acusa o general Rovisco Duarte de “ignorar” a prática do crime cometido pelo ex-comandante do Regimento dos Comandos, coronel Dores Moreira. “Devia mandar instaurar um processo de averiguações ou um processo de inquérito” e “se se provasse a veracidade da denúncia deveria proceder disciplinarmente contra este oficial superior e participar os factos ao Ministério Público", alega.

Prevaricação ou denegação da Justiça

Para o advogado, a veracidade da denúncia está “amplamente provada” e, por não ter mandado instaurar qualquer procedimento contra o oficial, “apesar de haver provas documentais e testemunhais do facto”, é apresentada a queixa pela prática do crime de prevaricação que, de acordo com o artigo 369 do Código Penal, prevê, por prevaricação ou denegação de justiça, uma pena de prisão até cinco anos “se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém”.

Alexandre Lafayette explica que, na altura da queixa, foi informado pela PGR de que “as denúncias [apresentadas no Verão] seguiriam para o Ministério Público para efeitos de inquérito”. Por visar um chefe militar estará a correr num tribunal superior – Supremo Tribunal ou Tribunal da Relação.

O gabinete de imprensa da Procuradoria-Geral da República não esclareceu em tempo útil em que fase se encontra o inquérito relativo a estas denúncias. Este não terá sido arquivado, já que o advogado seria informado de qualquer decisão de arquivamento – e não foi.

Queixoso arrisca prisão efectiva      

Todos os 19 arguidos do processo-crime relativo às mortes de dois instruendos no curso 127 são comandos. Todos são acusados de crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, previstos no Código de Justiça Militar (CJM). Sete são acusados do crime agravado pela morte, no início de Setembro de 2016, dos dois recrutas. Nesta circunstância, o CJM prevê uma pena de prisão superior a cinco anos, o que não admite suspensão da pena de prisão.

Um dos acusados por este crime é o tenente-coronel Mário Maia, que avançou com a queixa-crime contra o chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), general Rovisco Duarte em Agosto. O director do curso 127 está ainda entre os militares acusados de 23 crimes de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, de acordo com o n.º 1 do artigo 93 do CJM (quando “o militar ofende o corpo ou a saúde de algum subordinado no exercício das suas funções” é punido com pena de prisão de dois a oito anos).

O director responde ainda pelo crime de ofensa à integridade física nos termos do n.º 2 do artigo 93 (quando a ofensa implica “perigo de vida” para o ofendido é punida com prisão efectiva).

Proibido de sair da unidade 

Mário Maia, que regressou recentemente de uma missão militar que coordenou em Angola, está neste momento a cumprir a pena disciplinar de 15 dias de proibição de saída do local de trabalho, resultante do processo disciplinar do Exército que visou outros dois militares arguidos, confirmou o PÚBLICO junto do Exército.

O seu advogado Alexandre Lafayette informou o CEME de que iria fazer a queixa em Agosto. O momento escolhido, diz, “nada teve a ver” com a aprovação pelo CEME nesse mês da pena disciplinar que o oficial está agora a cumprir, garante. “A queixa só foi apresentada quando foi apurado que nada tinha sido feito pelo chefe do Estado-Maior do Exército” perante a denúncia apresentada em Fevereiro de 2017, sustenta.  

O assessor jurídico do CEME desconhece o teor da queixa do tenente-coronel Maia pois “o Ministério Público ainda não informou nem solicitou nada ao Exército sobre esse assunto”, disse o porta-voz do Exército, tenente-coronel Vicente Pereira.

A suposta falsificação do guião da Prova Zero, que o director do curso 127 alega ter sido “ignorada” pelas chefias, está a ser investigada pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa.

O pedido desta investigação foi feito pela magistrada titular do processo-crime relativo às mortes de Hugo Abreu e Dylan da Silva que mandou extrair certidões para a abertura de um inquérito ao coronel Dores Moreira, aquando da acusação aos 19 arguidos.  

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