A Europa é uma amizade?

Que amizade é esta onde só conta o egocentrismo de um dos amigos (e, ainda por cima, o mais forte)?

Uma lição de psicologia barata: não se pense pedir dinheiro emprestado a amigos. É meio caminho andado para arruinar a amizade. A probabilidade de os sentimentos serem derrotados pelo materialismo é elevada. Haverá quem abuse da amizade para trepar às costas dos amigos graças ao crédito. Se houver dificuldades em restituir o dinheiro em dívida, a amizade será critério categórico para perdoar dívidas. Só que o mesmo critério é válido para o amigo que está do outro lado da trincheira: quem empresta quer ver a cor do dinheiro — o materialismo também se sobrepõe à amizade. De acordo com o adágio: “Amigos, amigos, negócios à parte.”

Contudo, os amigos não praticam malfeitorias uns nos outros. Ou não o deviam fazer, a menos que a amizade seja uma intentona. A não ser que descaiam para o S&M, os amigos não atam as mãos uns aos outros. E se à amizade se impõe o torniquete das regras (o que é bizarro, pois a amizade devia ser guiada por princípios espontâneos, não por regras escritas), as negociações que as antecedem devem ser pautadas pelo equilíbrio. Caso contrário, o amigo mais forte dita para a ata as suas condições e o amigo frágil aceita-as sem bulir. Uma amizade destas vai a caminho do precipício. Pois uma amizade não se sujeita a mandamentos escritos.

Se os amigos se regem por regras, devem levar as consequências até ao fim. Se o amigo frágil precisa de ajuda financeira, o amigo mais forte deve ser o primeiro a atendê-lo. Não se conceba uma relação em que ao amigo mais forte assiste a fatia agradável da amizade e para o amigo franzino sobram os deveres. Uma amizade destas é uma amizade fracassada, ou a caminho de o ser. Ou nem sequer é amizade.

Termos em que restam duas hipóteses: ou os amigos aceitam que a amizade não se subordina a regras escritas, ou a forjam no conciliábulo de regras absurdas. No primeiro caso, não se coloque a hipótese de os amigos emprestarem dinheiro uns aos outros — assim o dita a saúde da amizade. Na segunda hipótese, sejam levadas ao limite as consequências da formalização de regras: numa amizade treslida, se o amigo forte emprestar dinheiro ao amigo franzino e se este for desleal, ameaçando não pagar (ou querendo renegociar a dívida), ao mundo não virá grande mal; à partida, esta era uma amizade frágil, ou uma outra coisa qualquer refugiada num eufemismo de amizade. Não haverá grande perda se a confiança se estilhaçar entre os dois “amigos” (assim, propositadamente grafado).

Aprendi outra lição, mais interessante do que a lição da psicologia barata: é preciso ter destreza na escolha de metáforas. O exercício estilístico exige que se saiba escolher os termos da comparação. Uma regra cardeal aplica-se ao exercício: só se pode comparar o que é comparável. O cientista social, alemão e socialista, que usou a metáfora tomada de empréstimo à psicologia social para justificar por que não deve a União Europeia transferir um camião de dinheiro para os países com dívida excessiva, foi desastrado. No plano comportamental, as nações não se comparam com pessoas. O episódio expôs a obstinação de quem se ensimesma no interesse nacional e despreza as responsabilidades europeias. A ter vencimento, a metáfora desagua numa incómoda interrogação: que amizade é esta onde só conta o egocentrismo de um dos amigos (e, ainda por cima, o mais forte)?

Já Ulrich Beck (um alemão desiludido) protestava contra a Europa alemã, descontente por a opção não ser a Alemanha europeia. Foi preciso ter vindo a Berlim e ouvir alguns alemães (académicos, políticos e membros de think tanks, de esquerda e de direita) falarem sobre o assunto para perceber, em carne viva, como a teimosia dissipa a lógica.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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