Portugueses contra "instrumentalização" da história da emigração para França

Os portugueses viveram a clandestinidade, a exploração, a xenofobia, como muitos dos que chegam de África e do Médio Oriente.

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Comemorações do 10 de Junho em Champigny-sur-Marne (arredores de Paris) daniel rocha

Há uma frente de luso-franceses e de portugueses residentes em França a levantar-se contra o que entende ser “a instrumentalização da emigração portuguesa pela extrema-direita”. Recusa o uso da retórica do “bom imigrante”, trabalhador árduo e subserviente, contra o “mau imigrante”, não branco e/ou não cristão.

"Nem bons, nem maus." Eis o título do artigo publicado nesta terça-feira no Le Monde, um diário francês de grande tiragem. Foi escrito pelo historiador Victor Pereira, professor da Universidade de Pau et des Pays de l'Adour e especialista em emigração portuguesa, e pelo jornalista Hugo dos Santos, dirigente da associação Mémoire Vive/Memória Viva, e co-assinado por outros 47 luso-franceses ou portugueses, incluindo o sociólogo Albano Cordeiro e o realizador José Vieira.

Na origem da polémica estão incidentes ocorridos na passagem de ano nos arredores de Paris. Com base num artigo sobre o bairro de lata de Champigny, um jornalista de Le Figaro, Alexandre Devecchio, publicou nas redes sociais um comentário: "Mais de dez mil portugueses viviam na lama. Sem água, sem electricidade etc. E sem violência, nem associação para chorar o racismo. Quem pode negar a desintegração francesa?"

A mesma ideia de ausência de violência foi repetida dois dias depois pelo politólogo Laurent Bouvet, durante um debate sobre laicidade, no programa 28 minutos, do canal Arte. E logo pelo jornalista e ensaísta Benoît Raysk, no site Atlantico.fr.

Victor Pereira ficou “perplexo”. "O Arte não é um canal sensacionalista”, é um canal de vocação cultural europeia. “Isso mostra bem como esta ideia está difundida no seio da sociedade”, diz. “Há um desconhecimento total sobre a história da emigração portuguesa. É muito raro ser convocada para o debate público em França e está a sê-lo de uma forma manipuladora, para reforçar o racismo contra grupos estigmatizados.”

Enquanto historiador, e enquanto cidadão, Victor Pereira entendeu que “não podia aceitar” aquilo. “Como filho de portugueses, tenho memória de ouvir: ‘mas vocês são diferentes dos árabes’. Por um lado, o desprezo. Por outro lado, o: ‘és menos pior’.”

A oposição entre os "bons imigrantes" e os "maus imigrantes" estruturou a política migratória francesa dos anos 60 e 70, lê-se no texto. Os estudos de Albano Cordeiro feitos na década de 80 mostram como a imigração africana em geral, e argelina em particular, serviu de escudo aos portugueses. Quanto mais os "árabes" se tornaram indesejáveis, mais eles se esforçavam para ficar invisíveis. E no lugar dos "árabes", estão hoje os ciganos, os subsarianos, os que fogem de conflitos no Médio Oriente.

O texto, explica Hugo dos Santos, é um protesto contra a "instrumentalização" da  história e da memória. Com dois destinatários: os franceses, que não conhecem essa história, mas também os portugueses, que também não a conhecem ou que a esqueceram. 

Os portugueses que desembarcaram entre 1951 e 1974 sabem bem o que é a clandestinidade, a exploração, a xenofobia. Não é verdade que nunca houve violência, sublinha Victor Pereira. Houve violência dos donos das barracas, que os portugueses pensavam que os podiam denunciar à polícia política. E violência no processo de realojamento. Há muitas histórias de resistência silenciosa, mas também alguns episódios de revolta.

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