“Marcelo introduziu um estilo de activismo presidencial”

António Costa Pinto, investigador do Instituto de Ciências Sociais, defende que o actual chefe de Estado é um Presidente "populista-institucionalista", que "utiliza o que muitos consideram populismo para traduzir o regular funcionamento das instituições". Uma marca inovadora visível nestes quase dois anos de mandato.

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António Costa Pinto considera que o semipresidencialismo português ainda não esgotou as suas potencialidades Nuno Ferreira Santos

A propósito do lançamento do livro Presidentes e (Semi)Presidencialismo nas Democracias Contemporâneas, coordenado por António Costa Pinto e Paulo Rapaz, desafiamos o primeiro, investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, a fazer uma avaliação do mandato presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa.

Portugal é hoje o terceiro país onde o Presidente tem mais poderes de dissolução. Isso significa que o nosso semipresidencialismo é mais forte que os outros?
Isso diz que, ao contrário dos que pensavam que depois da revisão constitucional de 1982 teríamos ficado com um regime mais parlamentarista, o nosso semipresidencialismo está na escala dos mais fortes, em que o chefe de Estado tem mais poderes. Mas o facto de o Presidente ser eleito em sufrágio directo e universal dá-lhe legitimidade para usar poderes informais. Como a Presidência é um poder unipessoal, isso depende muito da forma como cada Presidente usa os seus poderes.

Neste contexto, como avalia os primeiros dois anos da Presidência Marcelo Rebelo de Sousa?
A maioria dos autores deste livro aponta, não só para um reforço da legitimidade perdida da Presidência, mas para o carácter de inovação da Presidência. Isso é claro na análise sobre a campanha eleitoral, é claro na relação entre os media e o Presidente e é claro no que diz respeito aos primeiros tempos deste mandato.

É inovador em quê?
Começa por ser inovador na campanha eleitoral: Marcelo Rebelo de Sousa fez uma campanha modesta em termos de recursos, mas sobretudo porque foi o primeiro candidato que fez uma campanha remetendo para a sua dimensão mediática de comentador, e acabou por impor um novo modelo de campanhas eleitorais para a Presidência. É significativo que tenha sido o candidato que menos utilizou recursos financeiros e fez disso uma escola de diminuição dos custos eleitorais. Claro que ele podia fazer pelo facto de o seu indicador de popularidade ser elevado, mas o indicador de Cavaco Silva não era menor e este optou pelo modelo clássico, enquanto Marcelo, por vontade própria, fê-lo como indicador de disciplina orçamental.

E tem tradução no mandato em curso?
Sim, dá-lhe legitimidade por exemplo em relação ao veto que acabou de fazer à lei de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais. Assim como para controlar, ou tentar controlar, a vertiginosa despesa pública das campanhas eleitorais e para dizer aos partidos para baixarem os custos.

Isso não é um bocadinho populista?
Eu diria que Marcelo é um Presidente populista-institucionalista, ou seja, alguém que utiliza o que muitos podem considerar populismo para traduzir o regular funcionamento das instituições. Marcelo consegue ter um discurso político de afectos, proximidade e simplicidade, que muitos podem considerar populista, de grande proximidade à sociedade civil, mas que ele não utiliza como um típico político populista – que tentaria criar um novo partido, por exemplo –, mas concilia-o muito bem para reforçar as próprias instituições.

Esta forma de actuação do Presidente Marcelo faz esbater aquilo que tem sido apontado, no nosso sistema, como o presidencialismo do primeiro-ministro?
O presidencialismo do primeiro-ministro aponta para o facto de, nas democracias parlamentares, os chefes do Governo centralizarem muito mais poder porque diminuem os poderes dos partidos que os apoiam, que têm uma autonomia muito escassa. Por isso se fala da governamentalização dos partidos no poder. Isso faz com que, exceptuando uma conjuntura como esta – em que o Presidente devolveu um diploma ao Parlamento –, o Presidente da República tenha como principais interlocutores o primeiro-ministro e o Tribunal Constitucional, e o Parlamento tenha um protagonismo menor.

Temos na Constituição, desde 1982, um poder de demissão do governo que nunca foi usado e que, devido às suas próprias condições, parece não ter razão de existir… É uma figura de estilo da Constituição?
Em parte. Como sabe, essa alteração fez-se em reacção ao exercício de Ramalho Eanes. Mas a margem de manobra do Presidente continua a ser considerável. Esse foi o engano das primeiras análises sobre a revisão constitucional: esqueceram-se que o entendimento do Presidente sobre as condições em que pode demitir o Governo continua a ser muito subjectivo, desde o conceito da estabilidade das instituições ao de regular funcionamento das instituições.

Mas na prática é muito difícil que este poder seja eficaz, pois mantendo-se a composição do Parlamento, seria necessário que houvesse uma alternativa viável de Governo no mesmo Parlamento…
A história ainda não nos deu um exemplo de como isso poderia resultar. Nenhum Presidente ainda ensaiou essa solução, que depende muito da composição parlamentar. Perante a actual conjuntura de excepcionalidade que rapidamente se consolidou – um governo minoritário do partido que ficou em segundo lugar nas eleições – poderia haver, em teoria, uma janela de oportunidade para um Presidente forçar outra solução. O importante é que o semipresidencialismo está muito longe de esgotar todas as suas potencialidades. Ainda ontem me perguntavam se esta ainda é a democracia de Mário Soares. Ironicamente é, porque o nosso sistema político sofreu muito poucas alterações. O sistema de partidos é praticamente o mesmo, o sistema eleitoral também e o semipresidencialismo, com as alterações de 1982, também. Ou seja, Portugal, ao contrário de outras democracias, não mudou de sistema eleitoral, nem de partidos, não mudou da quarta para a quinta república em 40 anos. Mas o semipresidencialismo português é dos que permite maior inovação no sistema.

Permite também este “activismo presidencial” de Marcelo de que falam os autores do livro?
Marcelo Rebelo de Sousa tem uma legitimidade política com grande autonomia em relação ao seu partido. A própria natureza da função presidencial faz com que os Presidentes adquiram uma enorme autonomia em relação ao sistema político-partidário. Nada está escrito na Constituição sobre a influência do Presidente no sistema político, não está impedido até de criar um partido novo. Ramalho Eanes tentou, mas falhou. Mas nada impede que, perante o risco de implosão do sistema partidário, um Presidente não tome a iniciativa de, por hipótese, em vez de apadrinhar uma solução governamental, apadrinhe informalmente a constituição de um novo partido político. E não é anticonstitucional!

Quer explicar esse conceito de activismo presidencial?
Não há dúvidas de que Marcelo introduziu, não apenas no conceito mas também na acção política, um activismo presidencial, uma intervenção política sem precedentes na democracia portuguesa. Temos um activismo presidencial que se traduz num escrutínio quase diário às acções do Governo, um escrutínio que é público – aconteceu nas conjunturas de crise, como os incêndios ou Tancos, com o comentário à actuação de ministros, quando estes respondem apenas perante o primeiro-ministro. Isto é activismo presidencial: é uma muito maior intervenção pública sobre a democracia portuguesa, que escrutina não apenas o Governo como também outros órgãos de soberania.

Também há activismo no uso do veto político? Marcelo já o usou seis vezes…
Aí eu diria que há alguma continuidade institucional, porque não podemos ver apenas a quantidade de vetos mas a sua qualidade. O activismo presidencial aponta mais para a utilização do seu poder político sobre a democracia, da sua “magistratura de influência” como dizia Mário Soares, na sua capacidade de moldar, interpretar, comentar, desafiar as instituições a responder – obedecendo ou não –, mas simultaneamente mantendo a dimensão institucional.

Quanto maior a popularidade de um Presidente, maior o seu poder de moldar o sistema político – defendem os autores. Isso pode conduzi-lo a quê?
Àquilo que ele quiser. As leis do semipresidencialismo não foram alteradas, mas Marcelo dotou-se de uma enorme legitimidade política, com base na sua popularidade, para introduzir um estilo político novo que lhe dá um poder político muito mais reforçado que ele exerce todos os dias, seja através da agenda-setting (marcar a agenda), do comentário político, da fiscalização das instituições. Ele colocou-se efectivamente no centro da vida política, o que muitas vezes foi mal recebido pelos comentadores do centro-direita. Marcelo claramente coloca-se como o fiel deste sistema político e lá estará, com grande capital político, caso a circunstância política se altere.

Pode inclusivamente aproveitar alguma conjuntura favorável para promover uma mudança de governo a favor do seu partido, como o livro sugere que outros presidentes fizeram?
Pode, claro, mas sem a existência de uma forte crise económico-financeira ou outras situações imprevistas, o desafio para o centro-direita em 2019 é grande. O que vai colocar Marcelo ainda mais no centro da vida política portuguesa.

Cavaco Silva queria um governo ao centro após o resgate. Acha que o Presidente Marcelo também gostaria de ter um governo ao centro em nome dos consensos?
Isso é uma belíssima questão. A conjuntura de 2015 colocou os Presidentes perante a sua visão pessoal. Cavaco deixou-se dominar pelo carácter inovador desta aliança [PS/PCP/BE], teve efectivo receio desta opção à esquerda, enquanto Marcelo nunca teve dúvidas de que o eixo fundamental destes acordos parlamentares continuava a ser o PS. Portugal conheceu uma polarização dominada pelo centro-direita, com os dois partidos do costume, e depois de centro-esquerda, com o PS como elemento dominante. Isto não remete apenas para o facto de Marcelo ter um posicionamento político mais ao centro do que Cavaco Silva. Marcelo situa-se bem na ideia da polarização dominada pelo centro.

E hoje temos uma conjuntura única em que todos os partidos com assento parlamentar estão representados nas figuras mais proeminentes do Estado. Isto não é o verdadeiro consenso?
Se juntarmos a isso o estilo do Presidente da República, o espaço para novos partidos está muito dificultado. E ao contrário de Cavaco Silva, que ficou desagradado e receoso, Marcelo não, em parte porque chega à Presidência durante o governo minoritário e sabe que a sua margem de manobra é grande se as coisas correrem mal.

Impeachment de Dilma “esteve nos limites da constitucionalidade”

Como vê este debate em curso no Brasil sobre a hipótese de transição para o semipresidencialismo?
Por factores históricos, as democracias e os sistemas autoritários latino-americanos optaram pelos modelos presidencialistas, como em todo o continente americano. No Brasil, como em quase todas as potências latino-americanas, o presidencialismo tem sofrido os maiores dramas pelo facto de terem um sistema partidário muito fragmentado, sem paralelo noutras democracias. Estamos a falar de 32 partidos no parlamento. Isso faz com os Presidentes precisem de negociar constantemente e, além da corrupção endémica que existe no Brasil, o próprio presidencialismo de coligação também induz à compra, à procura constante de maiorias a qualquer preço. Algumas reformas no sentido do semipresidencialismo vêm sendo pedidas pelo centro-direita e áreas próximas do Presidente Temer, mas com a recusa do Partido Trabalhista e dada a capacidade de uma ampla maioria, não é provável que isso venha a acontecer.

Mas seria positivo?
Sem dúvida nenhuma. Sob o ponto de vista da reforma da democracia brasileira, isso seria um elemento de maior estabilidade do Brasil. Mas isso obrigaria à existência de um governo com maioria estável, ou seja, a amplas coligações no parlamento brasileiro, o que é muito difícil acontecer.

A opção pelo sistema presidencialista no continente americano tem a ver com o facto de serem de Estados federais?
Sim, em grande parte. Mas mesmo em Estados mais pequenos e homogéneos isso também acontece. Durante as transições democráticas, nos anos 80, houve um debate grande, nomeadamente no Brasil, sobre o modelo político a seguir. Mas na maior parte dos casos, como as transições foram negociadas com os militares no sentido da sua saída, não houve uma dinâmica de reforma institucional. Regressaram ao statu quo anterior e a maioria eram regimes presidenciais. Agora, a conjuntura actual do Brasil é bastante interessante porque o impeachment [de Dilma] esteve nos limites da constitucionalidade e era uma janela de oportunidade para fazer uma reforma institucional.

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