A ocasião pode fazer o ladrão (II): o “Brexit” e a distribuição de lugares no PE

É importante que os partidos portugueses e o Governo português liderem um movimento europeu de rejeição.

1. Como vimos na semana passada, por causa do "Brexit", não é expectável que Portugal possa perder qualquer deputado nas eleições europeias de 2019. Embora todos os cuidados sejam poucos, manter o número de 21 deputados em 2019 não será nem é uma proeza ou um feito especial. Sucede, porém, que, mercê de se aproveitar a ocasião para dar cumprimento ao princípio da proporcionalidade degressiva e para considerar a introdução de um círculo europeu com uma lista transnacional, subsistem sérios riscos para Portugal e para os países médios e pequenos. Não riscos em 2019; mas riscos de perdas significativas e injustificadas a partir de 2024. Perdas essas que, embora discretamente negociadas neste momento, se fariam sentir ao retardador nas eleições de 2024 e seguintes. É justamente esse risco que nos cumpre evitar. Quem avaliar a solução a que agora se chegar apenas pelo padrão de 2019 pode incorrer num erro sério, com graves consequências para o equilíbrio político futuro no Parlamento da UE. É crucial não ceder em nenhum dos dois tópicos que podem enfraquecer o peso institucional dos países médios e pequenos: a adopção da chamada lista transnacional e a consagração de uma fórmula matemática permanente de atribuição de mandatos por país.

2. A lista transnacional corresponde à criação de um círculo eleitoral europeu, com uma lista única, subscrita pelos partidos europeus ou por partidos provenientes de um número mínimo de países (fala-se em 7), em que se elegeriam 25-30 deputados. Haveria os deputados eleitos em círculos nacionais (ou regionais, dentro destes) e os deputados do círculo europeu. A ideia não é nova, é normalmente apodada de profundamente europeísta e federalista e é ferozmente apoiada por Macron e, bem assim, pela Itália e pela Grécia. Encontro-me, de resto, entre os que inicialmente simpatizavam com ela. Mas depois de séria reflexão, julgo que ela não tem nada de recomendável e deve ser descartada a todo o transe. Felizmente, o Grupo PPE, também em tempos favorável à consagração legal desta ideia, muito pela campanha que vimos desenvolvendo, inverteu a posição e está hoje contra a sua introdução. Já os socialistas, liberais, verdes e até a extrema-esquerda parecem apoiá-la.   

3. A criação do círculo europeu começa por ser indesejável porque aumenta o fosso entre os eleitores e os eleitos. Se hoje a relação entre os deputados europeus e o eleitorado é já longínqua e distante, o que dizer de deputados eleitos num círculo de 430 milhões de pessoas? Esta inovação, em vez de ser um sinal de descentralização e aproximação das instituições europeias, será uma deriva para o centralismo europeu.

Depois, vale a pena sublinhar que a existência de um círculo da união é algo totalmente desconhecido das grandes e boas tradições federais. Na Alemanha, na Suíça ou nos Estados Unidos, não existe nem está previsto nenhum círculo federal. Todas as eleições parlamentares, seja para a Câmara Alta, seja para a Câmara Baixa, se baseiam nos círculos estaduais ou cantonais (ou em subdivisões destes). Mesmo nas eleições presidenciais norte-americanas, o sistema eleitoral indirecto, com o seu colégio eleitoral é ainda um reflexo da natureza federal do país – o que, como aconteceu com Trump, pode levar à escolha do candidato menos votado. Na eleição indirecta do Presidente alemão, através da assembleia federal, há um envolvimento de todos os parlamentos dos Estados federados. É, portanto, rotundamente falsa a ideia de que a lista transnacional seria um avanço ou um passo federalista (e europeísta). Cura-se justamente do contrário disso, trata-se de um expediente centralista! E embora em Portugal poucos tenham essa consciência, mais uma vez se confirma: o federalismo é a negação do centralismo! Não deixaria de ser irónico que as federações desconheçam por completo o instituto do “círculo único” e que a UE, que não é uma federação, possa querer implantar um círculo europeu.

4. Em termos práticos, a questão seria prejudicial para os países médios e pequenos, porque a criação do dito círculo agravaria o fosso entre estes e os chamados grandes, subvertendo o equilíbrio resultante da lógica da proporcionalidade degressiva. Com efeito, não é difícil imaginar que, havendo uma lista europeia transnacional, os primeiros cinco ou seis candidatos dos vários partidos europeus sejam nacionais dos países mais populosos (Alemanha, França, Itália, Espanha, Polónia). É evidente e compreensível que assim será, pois é aí que se concentram os votos dos cidadãos europeus. Eis o que contribuiria para aumentar a quota e o peso desses países em face dos restantes. No caso da Alemanha, que tem um número máximo de 96 deputados, ultrapassaria mesmo esse limite, pelo esquema do círculo europeu.

Ao que se soma um argumento circunstancial, que não deve ser descurado, pois nenhum sistema eleitoral é assepticamente neutral. Uma lista com esta natureza converter-se-ia no veículo ideal para as forças populistas e extremistas à esquerda ou à direita. Le Pen, Wilders e Grillo são muito mais notórios e conhecidos a nível europeu do que qualquer dirigente dos partidos centrais. Em Portugal, por exemplo, talvez Le Pen seja mais conhecida que Macron; Wilders e Grillo são seguramente bem mais conhecidos do que os primeiros-ministros da Holanda e da Itália. A lista transnacional seria o palco e o pasto ideal para um voto de protesto e para um maior sucesso dos populismos que atravessam a Europa.      

5. Falta ainda falar sobre a questão absolutamente impostergável da fórmula matemática. Mas para já fiquemos pela lista transnacional. A sua adopção será negativa no plano europeu, mas será certamente muito perniciosa para os interesses de Portugal. É importante que os partidos portugueses e o Governo português, que terá de se pronunciar no Conselho Europeu de Sófia de 23 de Fevereiro, tomem desde já uma posição clara e inequívoca e liderem um movimento europeu de rejeição.  

Sim

Nuno de Brito, representante permanente na UE. O prémio diplomático da Câmara de Comércio e Indústria é mais do que merecido. Trabalho e resultados exemplares.

Não

Donald Trump. A polémica que envolve o livro Fire and Fury mostra, mais uma vez, que a Casa Branca é fonte inesgotável de incerteza e instabilidade. Perigoso.

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