Terra firme

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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Talhões de batatas em Tristão da Cunha, 2018 José Filipe de la Fuente
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Chegada do RMS St. Helena a Tristão da Cunha José Filipe de la Fuente

Três Anos em Tristão da Cunha foi publicado em Inglaterra, em 1910. Escrito por Katherine Barrow, mulher de um missionário anglicano, relata o dia-a-dia da comunidade, então limitada a menos de 100 pessoas, entre 1906 e 1909. Uma das fotografias da época incluídas no livro mostra os potato patches, pequenos talhões de batatas cultivados por todas as famílias e que ocupam um lugar central na vida da ilha.

Mais de cem anos depois, ao olhar para as fotografias que trouxemos de Tristão, ficámos estupefactos ao verificar a (literalmente) absoluta semelhança entre uma das nossas imagens e o registo fotográfico de 1907. O número, a dimensão e a delimitação dos talhões são exactamente os mesmos, tal como as pequenas cabanas de apoio, se exceptuarmos a substituição dos telhados de colmo por chapa ondulada. Que a mesma monocultura de subsistência, desenvolvida nos mesmos exactos moldes, permaneça, mais de um século e profundas mudanças depois, é um símbolo perfeito da particularidade da vida em Tristão da Cunha.

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Talhões de batatas no início do século XX DR

Sim, desembarcámos na ilha. E esse processo foi, em si mesmo, um acontecimento. Ao início da manhã, depois de um magnífico nascer do sol ao largo da ilha Inacessível, regressámos a Edimburgo dos Sete Mares, onde o comandante conseguiu finalmente ancorar, a cerca de meia milha do pequeno porto. O céu estava limpo e o sol brilhava, mas o vento e a ondulação marítima eram já demasiado fortes para permitir outra que não a forma mais difícil de aceder à ilha. Durante duas horas e meia, os passageiros, equipados com arnês e colete salva-vidas, desceram um a um por uma escada de corda para um pequeno barco pneumático que três marinheiros de Tristão tentavam manter tão estável quanto possível sobre vagas de dimensão considerável.

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Nascer do sol na ilha Inacessível José Filipe de la Fuente

A indicação era simples: quando a tripulação gritasse “Largue!”, era mesmo para largar, qualquer que fosse o nível de confiança que tivéssemos na sua capacidade para nos apanharem. Esse nível de confiança era bastante variável, como revelou a lúdica observação do penoso processo de transbordo: uns desciam com relativa desenvoltura e saltavam para o barco no momento certo; outros agarravam-se à escada como se a sua vida dependesse disso (o que, não fosse o arnês, seria verdade) e tinham que ser invectivados a saltar. O regresso foi ainda mais acidentado, com um passageiro a espernear no vazio e os ocupantes dos últimos barcos, nós incluídos, completamente encharcados. Algo que os ingleses resolveram da forma habitual, com uma deslocação em massa para o bar.

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Desembarque do RMS St. Helena José Filipe de la Fuente

Finalmente, depois de dias de antecipação, avanços e recuos, tínhamos chegado. O isolamento de Tristão da Cunha é isto: ausência de ligações regulares de carga e passageiros; inexistência de um porto seguro, o que pode impedir qualquer desembarque durante mais de dois meses; condições meteorológicas muito instáveis que tornam impossível um planeamento com mínimo de fiabilidade; 275 cidadãos britânicos rodeados por 2500 km de mar imprevisível em todas as direcções.

O percurso até aos talhões de batatas permite perceber um pouco melhor a forma como as condições naturais determinam a vida neste lugar. Os solos são pobres e muito declivosos – os talhões estão localizados numa das poucas áreas planas disponíveis, a cerca de três quilómetros do povoamento – e o vento sopra com enorme intensidade, hoje e durante a maioria dos dias do ano, o que limita o tipo de agricultura e reduziu a pedaços os dois geradores eólicos cuja instalação foi tentada.

O reconhecimento da escassez de recursos faz, aliás, parte do acto fundador do povoamento de Tristão. Em 1817 - após a retirada da guarnição que os ingleses instalaram brevemente na ilha, por receio de que pudesse ser utilizada no resgate de Napoleão, à data exilado em Santa Helena – o pequeno grupo que decidiu permanecer, liderado pelo escocês William Glass, assinou um contrato comprometendo-se a uma vivência comunitária, em que todos os custos e proveitos eram partilhados e não existiam hierarquias.

No essencial, essa lógica permanece. A terra é detida colectivamente, cada família tem direito a cultivar um talhão e não pode possuir mais de duas vacas e duas ovelhas, devido à reduzida quantidade de pasto disponível. Algo que, como Barrow descreve no seu livro, os ilhéus do início do século XX tiveram dificuldade em reconhecer, mesmo perante a morte de mais de 350 vacas no Inverno de 1906. A estratégia parece estar a funcionar, atendendo ao ar saudável dos animais (vacas, ovelhas, galinhas e até uma dezena de burros reformados com ar particularmente feliz) com que nos cruzamos no caminho. No entanto, como soubemos através de um veterinário que regressava de Tristão, o gado existente na ilha continua a sofrer de uma fortíssima deficiência crónica de minerais, o que diminui a sua resistência ao frio e à fome e obriga a administrar anualmente cápsulas com concentrado de zinco, cobre, selénio e magnésio.

Os talhões de batatas marcam o fim da única estrada (não pavimentada) da ilha. De um lado, a encosta da montanha sobe a pique até uma altura de cerca de 500 metros. Do outro lado, o mar estende-se até onde a vista alcança. À nossa frente, nos pequenos rectângulos verdes, cresce o que já foi o garante da sobrevivência. Por que razão, numa ilha que hoje importa praticamente tudo o que consome, a população continua a dedicar tempo e esforço para retirar da terra meia dúzia de batatas? Tradição? Valor simbólico de uma história de persistência? Gosto britânico pela jardinagem?

Regressamos a Edimburgo dos Setes Mares, já a sonhar com uma sanduíche da famosa lagosta de Tristão. Mas, essa, é outra história.

 

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