Uma casa onde havia sempre mais alguém à mesa

Isabel, filha de Mário Soares, escreve sobre “o sentimento de orfandade e de tristeza enormes” depois da morte do pai. “Um ano depois da sua partida, a dor e a saudade não se atenuaram, antes aumentam a cada dia que passa”.

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Isabel Soares com o pai na RTP, em 1990 Alfredo Cunha

Começo por sublinhar, uma vez mais, que o olhar de uma filha é sempre um olhar que não é isento, pois está embaciado pela emoção, pela ternura e pela profunda admiração.

O meu pai era, para mim, o meu herói.
Quando ele estava, tudo parecia seguro e tranquilo.

E, desde a minha mais remota infância, tudo, mas mesmo tudo, em nossa casa, girava à sua volta. Era assim que a nossa mãe agia, nos mais pequenos detalhes do quotidiano, companheira que foi, admirável, durante 66 anos de vida.

A nossa casa foi sempre uma casa cheia de gente, de amigos políticos, de amigos escritores, de amigos artistas. Nunca me lembro de haver almoços e jantares só em família, havia sempre mais alguém à mesa. As refeições, com a presença da figura tutelar do nosso avô João Soares, eternizavam-se, com as conversas e as histórias sobre política ou sobre livros, filmes ou pintura.

Lembro-me de que o meu Irmão João e eu ficávamos pregados àquela mesa a ouvir tudo, com uma atenção desmedida, em vez de irmos ter com os amigos da nossa idade.

Até porque, de vez em quando, essas confraternizações eram interrompidas, durante largos períodos, pelas ausências forçadas do nosso pai nas cadeias do Aljube ou de Caxias, na deportação para S. Tomé ou, mais tarde, no longo exílio em Paris.

Nessas alturas, a casa ficava silenciosa e triste sem ele. Eram os dias cinzentos e de chumbo da ditadura.

Nesses dias de prisão, íamos, com a nossa mãe e avô, às visitas semanais nos parlatórios, onde estava permanentemente um pide a seguir todas as conversas, sem qualquer hipótese de privacidade, e onde ficávamos sempre com a raiva e as lágrimas contidas dentro de nós.

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Maria Barroso e Mário Soares, em Nafarros, 1987 Alfredo Cunha

Seguíamos o que a nossa mãe nos dizia: não se pode chorar em frente da polícia!

Lembro-me, bem, de preferir as visitas ao parlatório do Aljube, naquela sala, quase medieval e soturna, dividida ao meio por uma imensa rede, porque aí ainda conseguíamos tocar nas suas mãos, ao contrário do frio asséptico de Caxias, onde nos separava um vidro e um corredor imenso onde circulava um guarda, porque aí não havia qualquer hipótese de contacto físico.

Nessas ocasiões, o João e eu tínhamos sempre a incumbência de tentar distrair os guardas para que a nossa mãe pudesse passar algumas informações sobre a vida cá fora.

Nas breves visitas semanais, de uma curta hora, era sempre o nosso pai que, nos dava alento e ânimo, que nos consolava e que nos dizia, com o seu sorriso luminoso, que a libertação estava para breve.

Nunca lhe ouvimos um queixume ou uma palavra de recriminação ou de desânimo.

Recordo, com emoção, o dia em que apareci numa fotografia de jornal, julgo que O Século, que noticiava o início dos exames de admissão ao liceu. No dia seguinte havia visita à cadeia do Aljube e o meu pai, com o seu olhar mais terno, disse-me orgulhoso: “Recortei a tua fotografia e colei-a na parede da minha cela.” Este era o meu pai!

Atento, preocupava-se com os nossos estudos e tinha sempre tempo para nos ouvir e aconselhar.

Nas longas cartas que nos escrevia da cadeia, todas carimbadas, lidas e devassadas pela censura da prisão, fazia-nos recomendações sobre o cuidado e o carinho com que devíamos envolver a nossa mãe e avô, os estudos que não devíamos nunca descurar e o comportamento exemplar que esperava de nós. Eram longas cartas muito ternas e atentas que nos enchiam de orgulho.

Com a nossa mãe, ensinou-nos o amor à liberdade, à democracia e à tolerância.

E mesmo nos momentos mais difíceis convencia-nos de que havia sempre uma janela de esperança. Nunca desistir e lutar por aquilo em que acreditávamos, foi uma das suas lições de vida.

“Só é vencido quem desiste de lutar” — frase que estava escrita na sede da CEUD — Comissão Eleitoral de Unidade Democrática da Rua dos Fanqueiros — era o lema que lhe estava colado à pele. Dizia-nos, muitas vezes, “atrás do tempo, tempo vem” e convencia-nos de que era sempre possível mudar o mundo e que o regime ditatorial ia acabar no dia seguinte.

Indomado e indomável, dizia o que pensava e nunca se deixava abater, mesmo quando estava sozinho contra quase todos. A dignidade com que viveu e a imensa coragem que sempre demonstrou foram para nós, seus filhos, um exemplo de vida. A liberdade era como o ar que respirava.

Republicano, laico e socialista, como dizia com grande orgulho, detestava o pretensiosismo, a pequenez e a cobardia.

Desde cedo percebeu que Portugal não podia viver isolado do mundo. Europeísta convicto, acreditava numa Europa mais justa, mais fraterna mais humana e solidária. E essa foi uma das suas grandes batalhas.

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Luís Vasconcelos

Depois, amava a vida acima de tudo, e ensinou-nos a aproveitar cada minuto, e a retirarmos o lado positivo, mesmo das situações mais adversas.

Adorava livros e ir às livrarias e aos alfarrabistas. Sabia onde tinha cada um dos seus livros e coleccionava primeiras edições. Tinha um imenso orgulho na sua biblioteca. Os museus, as galerias e a arte moderna eram outras das paixões, que partilhava com a nossa mãe.

Gostava de mar, de sol, de árvores e de estar à conversa com os amigos. Era um grande conversador e um excelente contador de histórias. As suas gargalhadas e o seu sorriso luminoso eram contagiantes e enchiam a casa.

Tinha uma curiosidade imensa por tudo e por todos. Conhecia Portugal como ninguém, a sua história e as suas gentes. Adorava flanar pelas ruas e ver todas as novidades.

Como a nossa mãe dizia, era um pouco um “enfant gâté”, mimado pelos pais, pela mulher, pelos filhos e netos, pelos amigos. Fazia questão em dizer que se sentia bem na sua pele e isso via-se porque estava à vontade em todo o lado.

A sua ligação ao mar era quase física. Adorava nadar. Primeiro na Foz do Arelho, onde passámos as férias todas da nossa infância, e onde nos ensinou a não ter medo das ondas.

Depois na Praia Grande — de que tanto gostava — e que data do tempo em que a nossa mãe descobriu o terreno de Nafarros e onde, com a ajuda do amigo Keil do Amaral, construíram a casa dos fins-de-semana. Era um retiro privilegiado para ele, onde instalou parte da biblioteca e dos quadros e onde amorosamente via crescer as plantas e o jardim, desenhado pelo seu bom amigo Gonçalo Ribeiro Teles.

Os almoços de domingo eram sagrados, com o seu tradicional cozido à portuguesa, e sempre na presença de amigos, que tinham dificuldade em seguir as conversas, porque discutíamos todos ao mesmo tempo e atropelávamo-nos no entusiasmo das palavras.

Depois do almoço era obrigatório, estivesse quem estivesse, ir ver as árvores e dar a volta ao jardim. Conhecia-as todas e algumas tinha-as até trazido de longe, como as sequóias da Califórnia.

E depois o mar da Praia Grande, com as suas ondas revoltas, dava sempre aso a banhos revigorantes, ou no Inverno a longos passeios à beira-mar.

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Alfredo Cunha

Finalmente no Algarve, onde até quase aos 90 anos, gostava de nadar e passear no areal do Alvor, rodeado da família e dos amigos.

Até ao fim dos seus dias adorava ir ver o mar, quase como se fosse uma necessidade imperiosa. Mesmo que no fim o olhasse com uma doce melancolia, repetindo-nos, incessantemente, a frase de De Gaulle: “A velhice é um naufrágio.”

Teve uma vida longa e rica, e sobretudo adorava viver.

Como escreveu o nosso querido amigo José Manuel dos Santos, “a palavra que melhor o diz é vida. Ele foi aquele que quis fazer a sua vida coincidir com a Vida (...) Ele foi aquele que levou a sua vida ao encontro das vidas dos outros: para atravessá-las, marcá-las, mudá-las, erguê-las, sobrepor-se a elas”. “(...) A política era-lhe uma respiração, uma pele, uma circulação.”

Mas é justo e imperioso dizer que o nosso pai nunca teria feito o que fez, ou chegado onde chegou, sem a presença tranquila, serena e doce, mas firme, dessa mulher admirável que foi a sua, minha mãe. Tinham a mesma dimensão, e esse é o nosso maior orgulho.

Quando a minha mãe partiu — foi a única vez em que o vi chorar — começou, também ele, a partir devagarinho. Deixou praticamente de sair, de ler jornais, de se interessar pela vida política.

Como tão bem caracterizou Clara Ferreira Alves, querida amiga que o visitava frequentemente, “e pouco a pouco, como um pássaro desgarrado, começou a partir”.

Partiu como viveu, rodeado do amor incondicional dos filhos e netos, com a sua mão na minha.

Um ano depois da sua partida, a dor e a saudade não se atenuaram, antes aumentam a cada dia que passa. O sentimento de orfandade e de tristeza são imensos. Crescemos e vivemos com este exemplo extraordinário de coragem, carácter e determinação, e a sua ausência é muito difícil e dolorosa.

Era ao meu pai que voltava quando tinha alguma dúvida ou precisava de um conselho e ele estava sempre lá.

Hoje é como se tivesse perdido uma luz.

A “pequenina luz bruxuleante” de que nos fala Jorge de Sena
(...)
“Como a exactidão como a firmeza
Como a justiça.
Apenas como elas.
Mas brilha.
Não na distância. Aqui
No meio de nós.
Brilha”

Estou certa de que muitos de nós, portugueses, respeitaremos o seu legado de esperança, continuando a luta pela liberdade, pela democracia e pela tolerância, honrando a sua memória e mantendo viva a sua imagem.

O meu pai deixou-nos poucos dias antes do meu aniversário. E de novo ouvi a voz maravilhosa de minha mãe citando Álvaro de Campos:

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
(...)
raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira.”

Trago-o no meu coração.

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Alfredo Cunha
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