E Tristão aqui tão perto...

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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Ilha de Nightingale José Filipe de la Fuente
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Inacessible Island José Filipe de la Fuente
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José Filipe de la Fuente
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É possível desembarcar e passar a noite na ilha; o alojamento foi cancelado e só é possível desembarcar durante algumas horas; não estão reunidas as condições de segurança e apenas os passageiros prioritários poderão ir a terra; vamos permanecer na zona e tentar o desembarque depois de amanhã.

As últimas 48 horas foram férteis em reviravoltas na verdadeira odisseia que é chegar a Tristão da Cunha.

A hipotética estadia na ilha já havia sido reduzida de duas para uma noite, com o desvio forçado até Gough. Mas ficou ainda mais limitada quando fomos informados de que o nosso alojamento em terra tinha sido cancelado; a família Glass decidiu aproveitar a passagem do pesqueiro Geo Searcher e está de partida para a Cidade do Cabo, na versão expresso. Ficámos desolados. As expectativas estavam muito altas para mais umas horas em Tristão, alojados em casa de uma família local.

Ontem de manhã, muito cedo, estávamos no convés para ver Tristão da Cunha pela primeira vez. E que visão! Escarpas verdes e inacessíveis que ora desapareciam entre as nuvens, ora surgiam de repente ao sol. E, à medida que o RMS contornava a ilha, cascatas, campos de lava da erupção de 1961, fajãs e, finalmente, o minúsculo porto e a meia dúzia de casas de Edimburgo dos Sete Mares ou, como é designado localmente, simplesmente “o povoamento”.

O tempo, no entanto, não estava tão favorável como inicialmente previsto e o ponto mais alto da ilha, o pico Queen Mary, nunca se deixou ver. O navio aproximou-se da costa, mas afastou-se rapidamente, e acabou por baixar âncora muito ao largo. Um barco pneumático veio até nós e, depois de diversas tentativas para acostar, um representante do Governo de Tristão subiu com relativa elegância por uma escada de corda, acompanhado por uma pequena pasta com um ar oficial.

À medida que o tempo passava e os procedimentos de desembarque não eram anunciados, crescia a desconfiança de que algo não estava a correr exactamente como planeado. Finalmente, o comandante dirigiu-se aos passageiros para anunciar que, após contacto com as autoridades de Tristão, tinha decidido não permitir o desembarque senão a passageiros prioritários. Em caso de dúvida, era óbvio que não iria arriscar a possibilidade de não conseguir trazer toda a gente de volta para o navio.

A bordo, as reacções variavam entre a resignação e a revolta, enquanto observávamos a governadora e dois funcionários do Governo britânico pendurados de um arnês a serem descidos para um muito balouçante barco pneumático. Nesta época de acessibilidade quase ilimitada, perdemos muita da capacidade para gerir a frustração.

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Escarpas de Nightingale José Filipe de la Fuente

Ao final da tarde, mais uma reviravolta: o comandante anunciou que, após contacto com os responsáveis da companhia de navegação, tinha obtido autorização de Londres para permanecer no arquipélago de Tristão durante mais dois dias. Atendendo à agitação do mar, o navio não pode ancorar e o plano é navegar durante toda a noite em torno de Tristão, rumando às ilhas periféricas durante a manhã do dia seguinte, regressando para ancorar ao largo de Edimburgo dos Sete Mares “se as condições o permitirem” (o que, já percebemos, é a frase-chave por estas bandas) e desembarcar no dia seguinte, por algumas horas, antes de zarpar para Santa Helena.

E assim, apesar da frustração e da incerteza, o dia de hoje acabou por ser de absoluto privilégio. Durante toda a manhã, circum-navegámos Nightingale e Inacessible -  ilhas desabitadas localizadas a cerca de 50km de distância de Tristão - rodeados por milhares de pássaros (estima-se que existam nestas ilhas mais de dois milhões de casais).

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Pássaros ao largo de Nightingale José Filipe de la Fuente

Agora, depois de mais uma tentativa frustrada de ancorar ao largo de Edimburgo e de duas horas de navegação num mar muito bravo, estamos tranquilamente ancorados à sombra da ilha inacessível. Todas as luzes exteriores do navio foram desligadas, com excepção da obrigatória lanterna de popa, para que a luminosidade não perturbe as aves. Escotilhas e janelas foram cobertas com plásticos negros e os passageiros foram instruídos para não acenderem as luzes das cabines. As luzes que não se conseguem desligar foram cobertas com toalhas.

O RMS St Helena tornou-se quase invisível. Motor desligado, ouvem-se apenas os latidos das focas nas rochas. À nossa frente, pressentimos a massa escura da ilha. Sobre as nossas cabeças, um esmagador céu estrelado. Amanhã é outro dia.

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