Uma boneca e os seus autores

France Gall foi uma boneca entre Gainsbourg e Godard – pas mal, quand même!

Foto
France Gall com Serge Gainsbourg em Paris em 1965, o ano em que ganharam a Eurovisão DR

Raramente uma canção parece tanto um retrato do, da, sua intérprete como Poupée de cire, poupée de son com que France Gall ganhou o Festival da Eurovisão em 1965 (o minúsculo grão-ducado do Luxemburgo venceu por quatro ocasiões o certame, sempre com intérpretes franceses). Ela era de facto uma boneca e quem a escolheu foi o autor da canção, nada menos do que Serge Gainsbourg – e nenhum outro tão relevante autor venceu alguma outra vez o certame que, por geralmente anódino que fosse, estava ainda longe de se parecer com a ora habitual parada de horrores festivaleira – os fireworks de que Salvador Sobral falou no seu momento da vitória, para os recusar. Gainsbourg foi não apenas o autor da canção, foi verdadeiramente “o autor” de France Gall, do que ela nesse momento se tornou, o seu Pigmalião, como de resto lhe era habitual – basta pensar no que fez com Jane Birkin, também sua companheira de muitos anos.

Dois anos depois era a vez de outra boneca ganhar, Sandie Shaw – que ficou famosa também pelos seus pés descalços –, pelo Reino Unido, com Puppet on a string, e essas duas foram as únicas vencedoras da Eurovisão que ficaram vedetas yé-yé, garantindo lugar na galeria de ícones dos anos 60.

France Gall continuou a carreira. E se fora Gainsbourg a escolhê-la, foi ela que em 1996 tomou a iniciativa de solicitar a realização do videoclip de Plus haut a, imagine-se, Jean-Luc Godard! Depois de uma recusa inicial, ele acabou por aceder, e o vídeo é de resto inconfundivelmente godardiano (seja dito, já agora, que não é preciso ir longe para caso semelhante: depois de ter sido seu intérprete em A Carta, Pedro Abrunhosa também pediu a Manoel de Oliveira que fizesse um vídeo para uma canção, Momento, ao que o realizador aquiesceu mas concretizando a solicitação num misto de clip musical e pequena curta-metragem de 4’30’’sobre o Porto – e sucede que ambos os vídeos, o de Godard e o de Oliveira, nem figuram usualmente nas suas filmografias, mas basta procurá-los na Internet).

France Gall foi assim uma boneca entre Gainsbourg e Godard – pas mal, quand même!

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