Uma aselhice e uma engenhoquice

O Presidente escolheu não negar qualquer das soluções da lei, antes exigiu que o seu fundamento seja explícito. Respondeu assim à aselhice dos partidos e deu-lhes a oportunidade de decidirem.

O veto do Presidente à lei sobre o financiamento de partidos é sóbrio, bem fundamentado e no tempo certo. Marcelo não enveredou pelo argumento constitucional, porque sabe bem que isso confirmaria a lei tal como está. Basta ler o esforçadíssimo argumento de Jorge Miranda, que insinua inconstitucionalidade porque a lei foi discutida em plenário mas com pouca “publicidade própria”, ou porque poderá haver sessões eleitorais em salas de instituições sociais, ou porque uma norma remete processos de volta à Entidade — soube-se depois que essa norma “inconstitucional” foi pedida pelo próprio Tribunal Constitucional — para se perceber que não basta puxar pelo pescoço de um gato para fazer dele uma girafa. Escreve Miranda que, “no limite, até poderia, porventura, aventar-se a hipótese de inconstitucionalidade formal”: o jurista não parece acreditar no que está a escrever. Não há inconstitucionalidade na lei. O Presidente também escolheu não negar qualquer das soluções da lei, antes exigiu que o seu fundamento seja explícito. Respondeu assim à aselhice dos partidos e deu-lhes a oportunidade de decidirem. Claro que agora terão cuidado, já se viu que o estapafúrdio comunicado PS-PSD-PCP só serviu para atiçar intrigas e não os une em nada, e terão uma boa oportunidade para enfrentar o populismo.

Ora, a engenhoca populista merece mesmo alguma atenção. A campanha, excelentemente facilitada pela lei feita à pressa, começou sob a batuta da direita inorgânica mais organizada, o Observador. Teve laivos de música militar, as bombardas foram-se sucedendo, a imprensa de referência imitou, pouco cuidando do ridículo: que as Finanças não tinham dado aval, que os partidos tinham um pacto de omertà (mas quando os partidos tornam públicos os seus pontos de acordo e de reserva são insultados como hipócritas) e por aí fora. Nessa onda, Xavier de Basto, eminência académica coimbrã, espraia-se por duas longas páginas do PÚBLICO em trivialidades acerca do IVA das empresas, para fugir à questão: por que é que as despesas correntes dos partidos para “divulgação de mensagem” dão origem a devolução do IVA, mas as campanhas eleitorais não são “mensagem”? Naturalmente, alguém que conclui a diatribe garantindo pomposamente que “Wittgenstein, no seu Tratado Lógico-Filosófico, escreveu: ‘Wovon man nicht sprechen kann,darüber muss man schweigen’”, merece o respeito profundo que a comiseração aconselha.

Como se vê, a direita inorgânica entusiasmou-se: é a oportunidade de atacar o PS nas suas finanças frágeis, e sobretudo de atingir o PSD tradicional, obstáculo a um novo partido populista, ou de usar os seus peões para o conquistar. Ganha sempre. E o CDS acha que muito fuzué faz esquecer o caso dos dinheiros dos submarinos, o seu fantasma caseiro. Para tanto serve uma discussão de forma, sem soluções para a lei em si.

Recapitulo, então. Deve a Entidade de Contas ser sujeita a uma instância de recurso? Sim. Deve ser considerado crime fazer um comício numa sala da câmara? Não. Devem os partidos ter devolução de IVA nas campanhas eleitorais? Eu acho que sim, o projecto de lei também, o Bloco e outros acham que não, mas, a bem dizer, esta é parte da lei mais dispensável. Deve a Festa do Avante continuar ilegal, com toda a gente a fingir que não é nada, mas com a espada de Dâmocles sobre o PCP? Um partido deve ser impedido de fazer uma festa, ou venda de livro ou t-shirt comemorativa numa angariação de fundos? É neste último ponto que a lei anterior deve ser alterada, acabando com a regra anti-PCP do tecto da angariação de fundos. Mas é sensato reforçar as formas legítimas de controlo destas iniciativas, das que já existem, como a comunicação prévia e presença de fiscais, às que devem ser bem definidas, dos talões de caixa registadora à listagem dos fundos.

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