Nenhum me convém

O debate interessou-me porque Rio ou Santana são candidatos a primeiro-ministro. Mas são confiáveis?

Acabo de ver na RTP (05.01.18) o frente-a-frente entre Rui Rio e Santana Lopes. Não sou filiada no PSD, mas o debate interessou-me porque qualquer deles é um candidato a primeiro-ministro. Para este efeito, nenhum me convém.

Comecemos por Rui Rio. A sua visão governativa é de longe mais consistente do que a do outro concorrente. Subscrevo a linha geralíssima que presidiria ao exercício do seu mandato: colocar o interesse de Portugal a prazo muito à frente da popularidade imediata — exactamente o contrário do que faz António Costa. Tenho razões para crer que teria a necessária coragem política para tal: demonstrou-o ao longo de oito anos durante a sua presidência da Câmara do Porto. Mas a solidez técnica não resolve toda a política, que requere empatia, sensibilidade e intuição que não vêm descritas nos manuais. Portugal inteiro não cabe na Av. dos Aliados; e a volumetria dos interesses que procuram capturar o governo não é comparável à do paroquial Futebol Clube do Porto. Uma boa formação técnica, que julgo indispensável, não deve transformar-se em tecnocratismo ou sobrepor-se a uma visão integrada do país, que abrange inevitavelmente matérias que são mais do foro da compreensão do que de equações e medições quantitativas; trata-se de matérias que não cabem numa folha Excel. Governar um país começa por ser uma imersão num mundo humano, num universo emocional que escapa à técnica e à ciência.

O que ouvi a Rui Rio sobre a reforma do Estado peca por um simplismo confrangedor: explicou como o Estado se deve organizar, mas omitiu o princípio de tudo, ou seja, a definição das funções que competem ou não ao Estado desempenhar. É que nessa definição entram as ideologias, as preferências subjectivas, e as escolhas serão puramente políticas, não se decidem com uma regra de três simples.

O resto é pessoal. Durante o consulado de Passos Coelho, Rui Rio, quer queira ou não queira, passou a imagem de alguém com muita pressa de arredar o líder e desembaraçar o caminho para ele próprio chegar ao poder. Em política, o que parece é. E Rio, pelos meios que frequentava e pelas declarações que fazia, mais parecia adversário do que apoiante do governo de Passos Coelho, na fase da existência mais dura e difícil que o PSD regista na sua história desde Sá Carneiro. A meu ver, e ao ver de muita gente, Rio violou a obrigação de lealdade partidária. É confiável?!

Santana. Igualzinho a si próprio. Doce, charmoso, afectivo, é (quase) impossível não ser cativado por ele. Um homem bom, sem dúvida. Se pudesse, distribuiria felicidade por toda a gente, embora a felicidade ou o seu contrário seja do foro privadíssimo de cada um, e nada que se espere de um primeiro-ministro. Esta noite tentou ser comedido: que não devíamos falar em “sonhos”, que os tempos exigiam “realismo”. Mas na mensagem final aos militantes do PSD, o coração e a imaginação falaram mais alto: tinham — pelo menos eles, militantes — de acreditar com toda a força que Portugal podia crescer muito, podia até tornar-se num dos países mais atractivos e desenvolvidos da Europa! Quer dizer: acreditar, ter fé, é mais de meio caminho andado! “Chassez le naturel et il revient au galop”, disse um sábio francês cujo nome já esqueci.

Em 2005, Santana inventou uma cabala das empresas de sondagens destinada a roubar-lhe a vitória eleitoral nas eleições de Fevereiro de 2005. Ainda hoje — esta noite — não percebe por que perdeu para Sócrates, não sabe que “trapalhadas” eram essas que lhe atribuíam e que Sampaio aproveitou para o remover do cargo. No PÚBLICO de 28.02.05, escrevi: “Daqui a uns anos haverá um livro [de história] com um capítulo intitulado As trapalhadas.” Vou dar um exemplo.

Pouco depois de Santana Lopes tomar posse como primeiro-ministro, sucedendo a um Barroso muito mais interessado no lustro da sua carreira pessoal do que no país que governava, Bagão Félix, ministro das Finanças, fez uma aparição televisiva, encenada da forma mais solene possível, em que explicou aos nativos que aqueles eram tempos de vacas magras e o Estado tinha, consequentemente, de cortar despesa. Tudo isto, é claro, com um ar tão grave que até eu acreditei que o ministro falava a sério. Menos de um mês depois desta comunicação ao país, Santana foi aos Açores. Vimo-lo, se bem me lembro, numa pradaria sob um céu nublado, rodeado de câmaras e microfones, jornalistas, personalidades regionais e mirones indescritos. Vimo-lo rodeado de carinho. Vai daí, o primeiro-ministro, emocionado com tanto afecto, abriu o seu coração: “Não quero impor mais sacrifícios às portuguesas e aos portugueses...” (cito de memória). Pensei nessa altura, ingenuamente, que o primeiro-ministro acabara de perder o seu ministro das Finanças, dada a vexatória desautorização. Mas nada: Bagão continuou no seu posto, e Santana não deve ter achado que fizera “trapalhada” alguma! É confiável?!

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