Gerir a espuma dos dias

É estranho não ver na elite política qualquer debate que tenha em conta a transformação ao nível do conceito de trabalho.

No próximo sábado, o PSD escolhe um novo líder. Esta eleição poderá ser um sinal sobre o país político ao longo do ano de 2018, e gera expectativa. A começar por parte de António Costa. O primeiro-ministro aposta na viragem de ciclo no PSD para negociar a descentralização e o próximo quadro comunitário, o Portugal 20-30. Simultaneamente, Costa tentará manter a aliança de poder à esquerda com o BE, o PCP e o PEV, em que se apoia parlamentarmente para governar.

A necessidade de negociar reformas de fundo como a descentralização, e preparar o próximo quadro comunitário, pode retomar um diálogo ao centro, ajudando a acalmar a tensão política e o confronto esquerda-direita. Por outro lado, ainda que seja expectável que a contestação social aumente e que a CGTP saia à rua mais do que nos últimos anos, tudo indica que a aliança parlamentar de esquerda se mantenha mesmo em relação ao próximo Orçamento.

Custa acreditar que o PCP e o BE, depois de assinarem acordos de entendimento com o Governo para quatro anos, estejam dispostos a dar de mão beijada a Costa a antecipação em alguns meses das legislativas de 2019. Resta perceber até que ponto ajudará a desfazer tensões políticas o novo perfil do exercício de mandato de Presidente da República por parte de Marcelo Rebelo de Sousa, mais interventivo de forma pública no quotidiano do Governo do que qualquer dos anteriores ocupantes do primeiro órgão de soberania.

A política portuguesa seguirá assim o seu rumo em 2018, quando se aplicará um Orçamento do Estado com aspectos positivos e o mais redistributivo desde há anos. Pode discutir-se se a folga deveria ter ido para pagar a dívida e baixar o défice. Admito que essa opção pudesse ser positiva a médio e longo prazo. Creio mesmo que, se o PS governasse em maioria absoluta, as decisões orçamentais seriam outras. Basta lembrar o calendário de reposições que estava inscrito no programa do executivo. Mas o Governo do PS é minoritário, e Costa assegurou o lugar de primeiro-ministro com acordos de aliança parlamentar com o PCP, o BE e o PEV. É por isso normal que tenha de acelerar as reposições ao ritmo que a pressão dos seus aliados impõe.

Mas ainda que as negociações orçamentais não se prevejam fáceis, tudo indica que de Bruxelas não virão más notícias sobre as finanças públicas portuguesas. O facto de a União Europeia ter aceitado, através de uma aliança entre o Partido Popular Europeu e o Partido Socialista Europeu, a eleição de Mário Centeno para coordenar o Eurogrupo não torna crível que haja sobressaltos vindos da Comissão Europeia.

A questão de fundo que se coloca na política portuguesa é, todavia, a do médio e longo prazo. As discussões que envolveram a aprovação do OE2018 mostraram que continua a existir nos partidos portugueses uma total ausência de perspectiva sobre o futuro. E como a política vive da gestão do dia-a-dia e de empurrar os problemas de fundo com a barriga, continuamos a ter elites políticas que se limitam a gerir a pobreza e a não tentar ultrapassar as condicionantes estruturais e históricas de país periférico. Esperemos que o debate em torno do Portugal 20-30 traga algo novo.

A baixa do desemprego é algo que deve merecer congratulação pública, assim como a promessa do primeiro-ministro de criação de emprego de mais qualidade. Mas é estranho não ver na elite política qualquer debate público, qualquer discurso sequer, que tenha em conta os movimentos de transformação social e histórica já em concretização, nomeadamente ao nível do conceito de trabalho. E que estas preocupações sejam afloradas apenas em alguns raros documentos. Quando a organização da produção mundial está a revolucionar-se de forma brutal, quando a deslocalização da produção para o Oriente e a morte produtiva da Europa se verifica há décadas, quando o modo de produção se robotiza e se prevê que dentro de uma década mais de um terço dos actuais trabalhadores não tenha emprego, em Portugal as elites continuam a enfiar a cabeça na areia e a gerir a espuma dos dias.

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