Nem Bafarelas 17, nem vinhos crus, mas Parker também não

As modas e as mudanças fazem parte das nossas vidas. Sem elas, seria tudo muito mais aborrecido. Bem pior do que bebermos vinhos mais encorpados é bebermos vinhos iguais. E é um pouco isso que está a acontecer em Portugal

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Fernando Veludo/NFactos

O mercado português ainda não considera um delírio fazer vinhos tranquilos com 17 graus. Veja-se o caso do famoso Bafarela 17, da duriense Casa Brites Aguiar. Sempre que é feito, o vinho esgota. Vende tão bem que já é imitado por outros produtores do Douro. Um dia, iremos olhar para estes vinhos como um epifenómeno de marketing, sem qualquer relevância para a história do vinho do Douro e, ainda menos, do vinho português. Mas, por enquanto, vão seguindo o seu caminho.

Paralelamente a estes vinhos-bomba, que, felizmente, não passam de casos isolados, assiste-se em todo o mundo, Portugal incluído, a um movimento, mais interessante e significativo, de regressão no volume alcoólico dos vinhos. O curioso é este recuo acontecer em contraciclo com o aumento da temperatura na Terra, quando o mais natural seria estar toda a gente, sobretudo nas regiões mais quentes e secas, a seguir um caminho mais parecido com o do Bafarela 17.

Todos estarão de acordo em relação ao papel determinante do clima nos vinhos, mas o “gosto da época” também é decisivo. Se houvesse dúvidas, bastaria olhar os contra-rótulos de algumas garrafas de vinhos do Douro do tal ano de 1997. Sabem qual era o teor alcoólico do Duas Quintas Reserva Tinto desse ano, que foi ainda mais quente do que 2017? 13%. E estamos a falar de um vinho do Douro Superior. Parece mentira, mas é verdade. Não foi só o clima que fez aumentar o volume alcoólico dos vinhos portugueses, foi também o mercado e a crítica.

Não há mal nenhum nisto. As modas e as mudanças fazem parte das nossas vidas. Sem elas, seria tudo muito mais aborrecido. Bem pior do que bebermos vinhos mais encorpados é bebermos vinhos iguais. E é um pouco isso que está a acontecer em Portugal. Soa bem dizer que o excitante em Portugal é haver num país tão pequeno uma grande diversidade geográfica, que, associada também a uma grande diversidade de castas, origina vinhos tão diferentes e singulares. Mas está a acontecer algo de paradoxal: os vinhos portugueses, sobretudo os dos segmentos médio-baixo, estão a perder a marca geográfica e a ficar todos muito parecidos. Em provas cegas, é cada vez mais difícil distinguir um vinho do Douro de um do Dão ou até mesmo de um da Bairrada. Pelo menos em vinhos novos, é essa a sensação com que se fica quando se provam séries mais longas de vinhos portugueses. A boa notícia é que, com o tempo, a marca regional e o perfil da casta ou das castas utilizadas acabam sempre por vir ao de cima. É como uma mulher maquiada: depois de a maquiagem cair, o que fica é a cara verdadeira.

A que se deve essa crescente homogeneização dos vinhos, essa perda de carácter e autenticidade? Entre outras razões, podemos estar a colher os efeitos da democratização da tecnologia, da massificação dos produtos enológicos como as leveduras seleccionadas e também do uso de castas iguais em quase todas as regiões. O que aconteceu ao mundo com a expansão global das principais castas francesas pode estar a repetir-se em Portugal com a replicação por todo o território das melhores castas nacionais, como a tinta Touriga Nacional e as brancas Alvarinho e Arinto. Por outro lado, não é certo que já tenha chegado até nós o efeito do primeiro bater de asas da borboleta da globalização. Se pensarmos bem, só agora começamos a dar sinais de que queremos sair da ditadura Parker, que consagrava os vinhos mais potentes e com longos estágios em barrica. Mas é mais uma intenção do que outra coisa, porque a maioria da crítica ainda pontua bem esse tipo de vinhos.

Portugal não é um país de mudanças abruptas. Quando Dirk Niepoort lançou o tinto Charme, um Douro de estilo borgonhês, a reacção inicial da crítica foi muito má. Lembro-me de Mark Squires, o provador de Robert Parker para Portugal, ter pontuado pior o Charme do que o Tons de Duorum, por exemplo. A crítica nacional também não reagiu muito bem.

Com o movimento dos chamados vinhos ditos naturais ou orgânicos está a acontecer algo semelhante. Uma boa parte da crítica tradicional olha com muita desconfiança, com troça até, para estes vinhos. Ainda assim, são vinhos em grande crescimento no mundo, o que poderá querer dizer que os críticos tradicionais estão a perder poder e influência.

Há imensas virtudes no movimento dos vinhos mais orgânicos. Está a fazer-nos olhar de maneira diferente para o vinho e para a terra. Mostra-nos que é possível fazer grandes vinhos sem intervir tanto na vinha e na adega, sem usar tantos químicos e receitas industriais. E, além de romper com o gosto estabelecido, tem contribuído para a redescoberta de castas pouco conhecidas e ajudado ao resgate de regiões que pareciam perdidas para o vinho.

Mas nem tudo são rosas e uma das maiores fragilidades deste movimento está na tendência para fazer só vinhos de álcool baixo ou muito baixo. Hoje, fazer um vinho de 10 graus ou até de 9, o mínimo consentido, é cool entre os adeptos dos vinhos orgânicos. Em Portugal, já há alguns. Mas, se quisermos ser sérios, um vinho de 9 ou 10 graus tem o mesmo valor enológico do Bafarela 17. São ambos excessivos. Vinhos “crus” tenderão a saber todos ao mesmo. No fundo, saberão não a uvas mas sim ao “método natural”. Num primeiro tempo de descoberta e novidade, estes vinhos mais radicais podem ser gulosos e agradáveis de beber. Porém, com o tempo, e tal como aconteceu com os vinhos Parker, acabarão por cansar até os seus gurus. A diversidade e o equilíbrio sempre foram o melhor do vinho.

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