O Tribunal Europeu e o nosso direito à vida

Por que violou Portugal a sua obrigação de proteger pela lei o direito à vida de um seu cidadão?

Portugal, no final do ano passado, foi mais uma vez condenado pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). Desta vez, não por ter violado o direito à justiça em prazo razoável, a liberdade de expressão ou a propriedade mas por violação do nosso direito à vida.

O caso Lopes de Sousa Fernandes contra Portugal é simples: a Joana, na queixa apresentada em Estrasburgo, referia que o seu marido tinha morrido em consequência de uma infecção contraída num hospital público que não tinha sido devidamente diagnosticada e tratada. Mais referia que recorrera a todas as instituições possíveis mas que não conseguira ver devidamente explicada a morte do seu marido nem conseguira que alguém fosse responsabilizado. A Inspecção-Geral de Saúde, sete anos e meio após a abertura do inquérito, suspendeu o andamento do mesmo à espera da solução que fosse dada ao processo que corria nos tribunais criminais. Processo-crime esse que durou seis anos e oito meses. Por seu lado, o processo que em 6 de Março de 2003 começou a correr nos tribunais administrativos para obter uma indemnização veio a findar quase dez anos depois sem que tenha sido encontrado qualquer responsável para a morte do seu marido. O mesmo aconteceu nos restantes processos.

Para Joana, Portugal tinha violado o artigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos que assegura que “o direito de qualquer pessoa a` vida e´ protegido pela lei”. E o TEDH, em 2015, assim o reconheceu ao mesmo tempo que condenou o nosso país a entregar à Joana uma indemnização no valor de 39 mil euros. Recorreu o Estado português para a Grande Câmara do TEDH e foi este órgão com 17 juízes que, no passado dia 19 de Dezembro, confirmou a condenação de Portugal, embora reduzindo a indemnização para 23 mil euros.

E por que violou Portugal a sua obrigação de proteger pela lei o direito à vida de um seu cidadão? Não porque se tenha apurado ter havido um ou mais médicos negligentes ou pouco cuidadosos, já que o TEDH não cuida desse aspecto. O que ao TEDH cabia apurar era se o Estado, neste caso Portugal, tinha um regime legal que assegurava a protecção efectiva do direito à vida e se esse regime tinha sido violado. E aquilo que o TEDH concluiu foi que, embora o nosso sistema legal assegurasse, em abstracto, a protecção do direito à vida, no caso do marido da Joana, as disfunções do sistema tais como a má comunicação entre os diversos departamentos hospitalares ou a excessiva lentidão de todos os processos intentados pela Joana tinham desprotegido processualmente esse direito para além do que era aceitável.

A decisão da Grande Câmara do TEDH tem uma importante declaração de voto, em parte concordante e em parte discordante, do juiz português no TEDH. Nessa declaração, Paulo Pinto de Albuquerque discorda da maioria dos juízes, na medida em que entende que o TEDH devia ter ido mais longe e considerado que o direito à protecção da vida tinha sido violado não só processualmente mas também substancialmente, dado que as estruturas hospitalares envolvidas no caso do marido da Joana, pela falta de material e pessoal, não podiam objectivamente responder às necessidades dos doentes em necessidade absoluta de ter apoio de saúde.

Para Paulo Pinto de Albuquerque, “na Europa, houve tempo em que a lei não entrava nas prisões ou nos quartéis do exército, quando os guardas e os oficiais eram deuses intocáveis, enquanto os prisioneiros e os soldados eram sujeitos insignificantes. Esse tempo já passou há muito para as prisões e para os quartéis do exército. Infelizmente, ainda não terminou para os hospitais”. E acrescentou, lamentando-o: “No entender da maioria [dos juízes], a Convenção Europeia dos Direitos Humanos deveria ficar na porta do hospital.” Para o juiz português, o TEDH tem de ser um activo protector dos direitos humanos, não podendo ter um lugar residual na defesa de tais direitos e valores. Uma posição que está em contracorrente com um sector mais conservador/estatista de juízes do TEDH que pretende reduzir o grau de intervenção deste tribunal alargando, desta forma, os poderes não supervisionados dos Estados.

O papel do TEDH na Europa e em cada um dos países membros da Convenção está, assim, sempre em aberto e ligado às tensões políticas e culturais, populistas e autoritárias, federalistas e isolacionistas que se vivem na Europa.

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