A política das catástrofes

Há cerca de dois meses, a seca estava na ordem do dia, era assunto dos noticiários e até foi difundido um anúncio de iniciativa ministerial a apelar aos cidadãos para que reduzissem o consumo da água. Entretanto, choveram umas pingas, a terra ficou húmida e verdejou um pouco. Foi o suficiente para as preocupações se dissiparem e o assunto deixar de assomar nas vozes públicas. Observando o que se passa no terreno, a situação catastrófica não se atenuou e não devemos esperar por chuva abundante quando o tempo em que ela é mais copiosa já começa a ficar para trás. A não ser que o Governo e demais entidades a quem cabe a tarefa de gerir o Inferno que aí vem tenham substituído os alarmes públicos pela oração à Virgem, a aparente tranquilidade que se vive por esses lados é de uma grande imprudência. Mas não é uma falha pontual: a denegação das questões do clima e a recusa em aceitar a ideia de que entrámos num novo regime climático fazem parte das posições do poder político. Um dos fenómenos da vida política, social e cultural do nosso tempo, em que o espaço público parece tão alargado que todos parecem poder aceder a ele, é o facto de haver grandes zonas de exclusão, onde falta a voz pública e os seus amplificadores. As vítimas principais da seca, as que mais sofrem os seus feitos, são um exemplo desta obliteração.

O sueco Andreas Malm, que escreveu um livro sobre o Antropoceno (o nome que se dá à nova época geológica), reduzindo-o a uma simples máscara ideológica, mobilizou para este campo a análise marxista, às vezes demasiado vulgar, mas com algumas iluminações a que não devemos fechar os olhos. Este geógrafo tenta mostrar que por trás desse “ecrã ideológico” está uma velha oposição com novas roupagens: hoje, diz ele, as classes opõem-se pelo maneira como as transformações do planeta dividem as populações entre as que são apanhadas nas falhas abertas pelos processos geo-tecnológicos, responsáveis pelo novo regime climático, e as que têm meios de se proteger e de evitar zonas de risco. Se a catástrofe seguir o seu curso, como parece inevitável, a médio prazo vai deixar de haver espaços herméticos, protegidos. Não haverá nenhuma green zone. Na perspectiva de Malm, sem antagonismos não é possível qualquer mudança política. Por isso, ele denuncia no conceito de Antropoceno aquilo que nele está ao serviço da narrativa de uma humanidade pirómana em que todos somos culpados, ainda que seja sabido que os dezanove milhões de habitantes do estado de Nova Iorque consomem mais energia do que os novecentos milhões que habitam em toda a África sub-saariana. E, por isso, ele submete à crítica “o mito do Antropoceno” e aponta os “maus usos” e as contradições desse conceito. O que na análise de Malm parece demasiado vulgar e esquemático é a sua insistência numa categoria ideológica e historicamente cristalizada como é a categoria política da classe. O antagonismo de classe precisa hoje de ser substituído por outros antagonismos. Verificámos isso recentemente, com os grandes incêndios de Junho e Outubro. De repente, emergiu um antagonismo entre o litoral e o interior, e entre as zonas urbanas e as zonas rurais. Ora, a denegação e o silêncio do poder político sobre a catástrofe climática só se consegue manter enquanto esta atravessar os campos, matando toda a vida que neles existe, mas sem afectar fortemente as cidades, para as quais trabalham os institutos meteorológicos e a protecção civil, com os seus divertidos alertas coloridos (do amarelo ao vermelho), como quem conta histórias de fantasmas a gente adulta, mas analfabeta quanto à meteorologia. 

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