Há uma casa no Porto onde mora a música experimental

A Sonoscopia celebra cinco anos de actividade desde que se instalou num prédio do Carvalhido que é hoje parte de um circuito além fronteiras.

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Numa sala de um prédio do Carvalhido, no Porto, há um palco para a música experimental feita em todo o mundo. Não é para um público duro de ouvido nem para uma plateia muito vasta. Serve os que procuram uma experiência sonora para lá da tradicional construção musical alicerçada em notas, num verso ou num refrão. Explora-se o ruído, organizam-se sons com recurso a instrumentos fora do convencional, recorrendo a métodos sem balizas ou regras. Mas esta experiência de concerto é apenas uma pequena parte do trabalho da Sonoscopia, que esta sexta-feira completa cinco anos de actividade no edifício com o número 33 da Rua da Prelada onde existe, acima de tudo, uma casa de trabalho em prol da música experimental.

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Numa sala de um prédio do Carvalhido, no Porto, há um palco para a música experimental feita em todo o mundo. Não é para um público duro de ouvido nem para uma plateia muito vasta. Serve os que procuram uma experiência sonora para lá da tradicional construção musical alicerçada em notas, num verso ou num refrão. Explora-se o ruído, organizam-se sons com recurso a instrumentos fora do convencional, recorrendo a métodos sem balizas ou regras. Mas esta experiência de concerto é apenas uma pequena parte do trabalho da Sonoscopia, que esta sexta-feira completa cinco anos de actividade no edifício com o número 33 da Rua da Prelada onde existe, acima de tudo, uma casa de trabalho em prol da música experimental.

A associação foi fundada oficialmente em 2011 pelos músicos Henrique Fernandes e Gustavo Costa e pela produtora Patrícia Caveiro, que dois anos depois fizeram do prédio onde funcionava um jardim escola a sua sede. Explica-nos o último, numa das nossas visitas ao espaço, que este era um sonho com mais de duas décadas; na altura, já desenvolvia trabalhos conjuntos com alguns dos músicos que hoje gravitam em torno da Sonoscopia.

Fazem parte desse lote Alberto Lopes, especialista em construção de instrumentos e responsável pelo ciclo de música experimental/improvisada Co-Lab, que decorreu no Porto entre 1999 a 2003, e Rodrigo Cardoso, fundador da editora Bor Land e ex-integrante dos Alla Polacca. A dupla integra o “núcleo duro” do colectivo, que é também base de trabalho para João Mascarenhas, que, entre outros projectos, fundou a Stealing Orchestra, e para Alexandre Soares, dos Três Tristes Tigres e dos Osso Vaidoso, com quem Gustavo também colaborou.

Diariamente vive-se no edifício uma rotina de trabalho que começa por volta das 9h. Nos dois pisos do prédio, os estúdios e as salas de ensaio estão ocupados por músicos embrenhados em novas composições ou no desenvolvimento de criações artísticas, num horário “quase de escritório”. O edifício que dispõe de dois terraços de dimensões generosas está equipado com cozinha e com dormitórios onde ficam hospedados os artistas em residência.

Desde meados dos anos 90 que Gustavo dividia salas de ensaio com outros músicos. No final dessa década já o fazia com alguns dos actuais integrantes da associação. É aí que nasce a vontade de encontrar uma casa. Com Alberto Lopes, arrancou com o Grátis Lab, espaço que durante pouco tempo serviu de base para o Co-Lab e para a associação Sentidos Grátis, que mais tarde daria origem ao Contagiarte.   

“Já desde essa altura, e até antes, o objectivo era ter uma casa onde se pudesse viver e ter uma experiência muito mais intensa daquilo que é fazer música”, recorda. Desde muito novo que Gustavo ouvia falar de músicos, como Sun Ra, que partilhavam casa com outros artistas. A ideia de poder fazer música a qualquer hora sempre foi uma meta a atingir. Como inspiração serviram alguns espaços autónomos: squats ou centros de cariz mais anarquista onde tudo é feito de forma colectiva e sem uma hierarquia.

“Para mim, a anarquia acaba por ser quase uma fé. É uma utopia em que acredito, mas obviamente na vida real não ponho em prática coisas tão directas. Aqui somos muitos e temos de lidar com muitas tarefas. Por isso mesmo, inevitavelmente, há sobreposições e pessoas que acabam por desempenhar funções para as quais estão mais talhadas”, diz.

150 concertos, 40 nacionalidades

Ao longo dos cinco anos de actividade da Sonoscopia na actual sede, realizaram-se cerca de 150 concertos de projectos de aproximadamente 40 nacionalidades, de todos os continentes. Só em 2017 foram 25.

Os concertos são apenas um complemento de toda a actividade diária levada a cabo pela associação, que se foca sobretudo no desenvolvimento de novas criações destinadas a serem apresentadas fora de portas, em território nacional e internacional. Desse historial fazem parte projectos que continuam em marcha como o Phobos – Orquestra Robótica Disfuncional; o Phonopticon, “modelo de criação e representação sonora colectiva inspirado na arquitectura do Panóptico, um edifício projectado por Jeremy Bentham no século XVIII”; o Phonambient, que passa pelo registo e preservação do “património sonoro contemporâneo” de uma determinada cidade ou região; ou o Das Gavetas Nascem Sons, um instrumento musical colectivo, entre outras criações.

Estes projectos são fonte de rendimento da associação, que para algumas actividades também conta com apoios estatais. Com todos os integrantes dedicados a tempo inteiro à actividade musical, o resultado do trabalho individual de cada um também é o garante para que a associação continue a subsistir.

Já dos concertos a Sonoscopia não retira qualquer margem de lucro. Toda a receita é para os músicos. Sob a designação de Microvolumes, estas sessões que acontecem em média duas vezes por mês têm o preço de seis euros, com jantar incluído.

“É uma forma de criar um ambiente mais informal e de proximidade com os músicos”, explica Gustavo. E também de contornar a possibilidade de se tornar inviável para o público chegar a tempo de ver os concertos, que por norma começam cedo, por terem de terminar antes das 22h.    

Um público, um circuito

Ao contrário do que aconteceria se se realizassem num espaço de concertos convencional, nestas sessões o público aparece em número satisfatório. “Tem vindo a aumentar”, confirma Gustavo. “É habitual em qualquer sala da Europa ou do mundo estarem cinco ou dez pessoas a assistir”. Na Sonoscopia, dos concertos que tivemos oportunidade de presenciar, estariam em média 40 pessoas numa sala com capacidade para cerca de 50. Houve dias em que a capacidade chegou ao limite. “Há concertos que não divulgamos tanto para que quem vem possa estar mais confortável."

Apesar de haver jantar e um bar de apoio, Gustavo sublinha que o espaço “não é nem será” um bar. Quem lá vai terá de ir pela música, o que a julgar pelo respeito e pelo silêncio durante as actuações é objectivo que está a ser cumprido.

Agendar concertos e planear residências artísticas é uma tarefa difícil não pela escassez de propostas, mas pela quantidade elevada, que obriga a uma selecção. “Existe um circuito internacional e uma espécie de intercâmbio”, conta Gustavo.

Em Portugal, esse circuito também existe e actualmente “não fica nada a dever ao de outros países, ao contrário do que acontecia nos anos 50, quando no centro da Europa já existia um circuito vanguardista muito à frente”. Só mais tarde é que a música experimental cá chegou pela mão de músicos como Jorge Lima Barreto, Carlos Zíngaro ou Vítor Rua, “os pioneiros”.  

Além da Sonoscopia, fazem parte desse circuito restrito o Salão Brazil, em Coimbra, a SMUP – Sociedade Musical União Paredense, na Parede, e as Damas em Lisboa. Além destes espaços, outros recebem alguns músicos que por cá passam: as Oficinas do Convento, em Montemor-o-Novo, e o Grémio Caldense, nas Caldas da Rainha. Já na Galiza, em Pontevedra, há o Liceo Mutante, “ideologicamente muito próximo da Sonoscopia”.

A música experimental continua a ser para um nicho. Gustavo Costa, que já colaborou com músicos como John Zorn, Damo Suzuki ou Steve Mackay, admite existir quem ainda não aceite algumas composições dentro do espectro do experimental como música. Não é algo que o preocupe: “Muitas vezes comparo a cisão que houve com a música tradicional com a ideia de que a Terra era o centro do universo e de que havia um número restrito de planetas em torno da mesma. De repente descobrimos que o universo é extremamente vasto e que só conhecemos uma porção ínfima em relação ao que está por descobrir”. Também na música, acredita, entre a nota e o ruído, "ainda está tudo por descobrir”.