Uma antologia que esteve vinte anos a marinar

Os Mais Belos Poemas Portugueses partiram de uma iniciativa do editor José da Cruz Santos. O resultado é uma bela antologia com dois senãos: demorou demais a sair e não sabemos quem escolheu o quê.

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Vitorino Nemésio é o terceiro poeta mais representado nesta antologia, logo após Camões e Pessoa DR

Chama-se Os Mais Belos Poemas Portugueses, tem como subtítulo Escolhidos por Vinte e Cinco Poetas, e é uma antologia em dois volumes de toda a poesia portuguesa, editada com o habitual cuidado gráfico das publicações de José da Cruz Santos, o responsável da Inova e da Oiro do Dia, e agora da Modo de Ler.

Que nenhuma escolha poderá alguma vez ser inteiramente consensual, é uma evidência (e uma felicidade) que não vale a pena sublinhar. Mas com escolhedores como Sophia e Eugénio de Andrade, Gastão Cruz e Vasco Graça Moura, António Franco Alexandre e Luís Miguel Nava, para citar apenas alguns dos 25 poetas envolvidos nesta selecção (cada um escolheu 25 poemas), seria deveras surpreendente que estes dois tomos não incluíssem, como de facto incluem, muitos dos mais notáveis poemas da lírica portuguesa.

Avaliando-a estritamente em função do resultado, esta é, dos poetas medievais sensivelmente até Ruy Belo (1933-1978), uma excelente antologia da poesia portuguesa, só talvez, aqui e ali, um bocadinho previsível. Mas de Ruy Belo em diante, e apesar de algumas escolhas acertadas, a amostra vai-se tornando mais escassa e a selecção, quer de poetas, quer de poemas, perde solidez.

É natural que as antologias se tornem mais discutíveis quando se aproximam do presente, mas esta ignora todos os poetas revelados a partir do final dos anos 80 do século XX. E não tem nenhum poema publicado já no século XXI. O mais novo dos poetas representados, Paulo Teixeira, nasceu em 1962 e publicou o seu primeiro livro há mais de 30 anos, em 1985.

Para se perceber esta indiferença à poesia das últimas décadas, é preciso abordar o invulgar percurso deste projecto, cuja peculiaridade se começa a adivinhar logo na lista de poetas-seleccionadores, já que não deixa de ser inesperado que uma nova antologia publicada em 2017 inclua escolhas de Sophia, Eugénio ou Nava, que morreram, respectivamente, em 2004, 2005 e 1995.

O organizador e prefaciador destes volumes, o poeta e ensaísta Luís Adriano Carlos — cuja extensa introdução vai bastante para lá do que se esperaria de um texto com esta finalidade, oferecendo um competente resumo do que filósofos e poetas escreveram, desde a Antiguidade, sobre o belo e o sublime, a estética e o gosto, e outros tópicos de interesse para uma teoria geral das antologias —, escreve: “o leitor notará que a selecção ocorreu em data anterior a 1995, porquanto seis dos juízes desapareceram entre esse mesmo ano e 2007”. Além dos já referidos, lembra Egito Gonçalves, Fernando Assis Pacheco e Fiama Hasse Pais Brandão.

O prefácio não adianta explicações para esta circunstância, mas o próprio Cruz Santos, em entrevista recente ao Diário de Notícias, explica que começou por solicitar estas escolhas para o volume 25 Obras-primas da Poesia Portuguesa, que efectivamente publicou em 2006. Mas ficou-lhe sempre “atravessada”, se nos é permitido o coloquialismo, a ausência, nesses 25 poemas mais votados, do soneto Floriram por engano as rosas bravas, de Camilo Pessanha, que particularmente admira. E começou a acalentar o projecto de uma antologia que incluísse, exceptuadas as repetições, todos os 25 poemas escolhidos pelos 25 poetas. Só que, entre autorizações, financiamentos, organização editorial dos materiais, e outras dificuldades, acabou por demorar mais 11 anos a lançar estes dois volumes.

Fica assim claro porque é que a parte final desta antologia dificilmente pode deixar de provocar alguma perplexidade ao leitor de 2017. E se é verdade que esse efeito de estranheza é agora mais óbvio e tenderá a dissipar-se com o tempo, também a inquestionável importância documental destes volumes é afectada pelo facto de se ignorar quem escolheu o quê. Uma opção que o editor justifica, na mesma entrevista ao DN, pelo seu receio de que certos poetas pudessem ficar melindrados ao perceberem que não constavam das escolhas de alguns dos seus amigos. Mas se nenhum seleccionador impôs tal condição, é pena que os leitores tenham sido privados de uma informação cujo interesse está longe de se resumir à satisfação de propósitos voyeuristas.

Descontada a fragilidade do seu lanço final, deve reconhecer-se que chega a parecer estranho que a pura agregação das escolhas individuais de 25 poetas possa ter resultado numa antologia como esta, que além de fazer razoável justiça ao título, oferece uma panorâmica bastante equilibrada do nosso património lírico, mais expectável num volume organizado por um só seleccionador.

Antes de tentar sobrevoar por alto esta extensa paisagem lírica — já que seria impossível inventariar e comentar a escolha de todos estes 300 e muitos poemas —, há um dado cultural que talvez valha a pena salientar, e que é a circunstância de esta antologia parecer vir confirmar que aquela que é porventura a sua mais óbvia antecessora — o conjunto das quatro Líricas Portuguesas originalmente editadas pela Portugália entre 1940 e 1969 — contribuiu poderosamente, e até hoje, para formar o gosto de sucessivas gerações de leitores (poetas incluídos).

Basta notar que, de Almeida Garrett (1799-1854) a Luiza Neto Jorge (1939-1989), só quatro autores aqui representados não surgiam já nessas antologias: o Conde de Monsaraz (1852-1913) — e o poema escolhido justifica bem a inclusão —, José Gomes Ferreira (1900-1985), talvez a mais surpreendente omissão das Líricas Portuguesas, o dispensável António H. Balté (1906-1992) e ainda António Osório (n.1933), que só se revelou em livro após António Ramos Rosa ter organizado, em 1969, a 4.ª e última série das Líricas (projecto que Cruz Santos, aliás, acompanhou de perto, já que trabalhava então na Portugália). E se passarmos dos poetas aos poemas, as coincidências continuam a ser numerosas. Só da 1.ª e 3.ª séries das Líricas, respectivamente organizadas por Régio e Sena, transitaram 70 textos para esta antologia.

Os Mais Belos Poemas Portugueses abrem com uma breve mas feliz escolha dos cancioneiros medievais, e antes de chegar a Camões, cujos 22 poemas só ficam atrás dos 32 vindos de Pessoa e companhia heterónima, o leitor pode ainda deslumbrar-se com boas selecções de Bernardim Ribeiro e Sá de Miranda.

Com quatro poemas, o excelente Francisco Rodrigues Lobo (c.1580-1621) é o autor mais representado entre Camões e Bocage. Seguem-se boas escolhas, para citar apenas alguns nomes mais importantes, de Garrett, Antero de Quental, Gomes Leal, Cesário Verde, António Nobre e Camilo Pessanha, cujos 13 poemas o tornam no 5.º autor mais representado nesta escolha inter pares. Mas os sete poemas de Pascoaes também sugerem que os poetas nunca validaram essa ideia bastante difundida de que o autor da Senhora da Noite seria um poeta datado.

Na galáxia pessoana, a maior novidade é a ampla representação de Ricardo Reis. Já o genial Mário de Sá-Carneiro, com 15 poemas, falhou por pouco o pódio desta antologia, e falhou-o para (outra refrescante surpresa) Vitorino Nemésio, representado com 17 textos, que vão dos seus grandes poemas dos anos 30, como Navio de Sal, até ao espantoso testemunho de um intenso amor tardio que é Pedra de Canto.

Na geração seguinte, Jorge de Sena, Sophia, Carlos de Oliveira (o obrigado deste leitor a quem reparou no discreto Nevoeiro), Eugénio de Andrade, Mário Cesariny, Ramos Rosa e Alexandre O’Neill são, justificadamente, os autores mais representados. Eugénio é mesmo o 6.º autor com mais poemas, logo atrás do seu amado Pessanha, mas a escolha detém-se nos seus livros dos anos 70, ignorando alguns magníficos poemas mais tardios.

David Mourão-Ferreira e Ruy Belo ainda são bem antologiados (Herberto Helder não autorizou a reprodução dos seus poemas), mas a partir daqui, como já se disse, a antologia perde algum interesse. Fiama e Luiza Neto Jorge ainda têm direito a três poemas, e de Vasco Graça Moura foram incluídos dois ciclos importantes, mas faltam poetas e poemas relevantes, e os poucos autores mais recentes raramente estão bem representados, até porque vários deles escreveram os seus melhores poemas nos últimos vinte anos.

Uma antologia que vale certamente a pena ter, mas cujo impacto teria sido substancialmente diferente se tivesse sido publicada há vinte anos.

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