Ana resiste, Alice resignou-se: a luta invisível dos despejados

Ana Barbosa tem 28 anos, Maria Alice 79. Foram vizinhas durante alguns anos, em prédios contíguos na baixa do Porto. Até que uma ordem de despejo lhes pôs a vida do avesso e se viram a morar sozinhas num prédio. Uma história de resistência — e outra de desistência

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Manuel Roberto

Quando há umas semanas lhe cortaram a água de casa com a justificação de que o prédio não estaria habitado, Ana Barbosa inquietou-se. Não era a primeira vez que se sentia invisível — no que isso tem de pior. As obras no exterior do edifício onde vive arrancaram com ela dentro, a caixa de correio foi retirada, a campainha deixou de funcionar. “Este sentimento de as pessoas não nos verem é perturbador”, explica. Sentada ao seu lado, Maria Alice acena a reconhecer aquela mágoa. Até Março, viviam em prédios contíguos no Porto. Ana no 52 da Rua da Conceição, Alice no 58. Resistiram a uma ordem de despejo, viram todos os vizinhos desistir e acabaram por ficar sozinhas.

— Custa muito viver só num prédio, custa mesmo.

Maria Alice, 79 anos, resignou-se. Ana Barbosa, 28, ainda luta. Por quanto tempo, não sabe bem: “Vou acabar por sair”, diz como quem reconhece a soberania invencível do senhorio. A história não é invulgar no Porto — e noutras cidades onde o negócio imobiliário apetecível para proprietários em busca de mais lucro desencadeou ordens de despejo a quem se tornou pouco rentável. “Chorei muito quando mudei de casa. Gostava muito de viver na baixa. Mas agora parece que é tudo para hotéis”, lamenta Maria Alice, voz de revolta conformada.

Nascida em Cinfães, a única menina entre quatro irmãos, Alice viu-se na cidade grande com apenas nove anos. Viajou sozinha, com a morada da madrinha anotada: Rua da Conceição, número 58. Ia para “aprender a arte da costura” e fazer-se mulher do trabalho. “A minha mãe julgava que aprendia e regressava à aldeia. Mas gostei tanto do Porto, ao fim de três dias já cantava de satisfeita”, recorda. Ficou e não mais saiu. Viveu com a madrinha até ela morrer. A casa, o quarto andar de um prédio de traça típica, era arrendada e o senhorio nunca aceitou vendê-la.

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Manuel Roberto

Alice ganhou raízes no centro da cidade. Fez da costura o seu ofício, com a madrinha como braço direito, compôs um enxoval inteiro. Ainda o guarda, resignada aos “namoricos” que nunca passaram disso. “Nunca me casei. Tenho pena de não ter filhos, gostava muito.” Amigos foi fazendo entre os vizinhos, numa cidade que ainda sabe ser aldeia. Elegeu o café preferido, a mercearia, a padaria, o cabeleireiro. Criou rotinas. “Saía de casa e tudo me cumprimentava”, conta.

Era feliz, apesar de solitária, apegada ao seu apartamento com vistas para o Douro em dias de céu claro. Mas depois veio a notícia inesperada: o senhorio queria fazer obras no prédio e Alice tinha de sair. Foi um processo longo. Apesar de a casa ter já condições pouco simpáticas — “chovia na sala, na cozinha, na minha cama” —, não queria abandoná-la.

“É a vida das pessoas que está em causa”

Ainda lá vivia quando as obras arrancaram, já o prédio como um fantasma, sem gente em todas as casas, entaipado por fora. “Havia pó por todo o lado”, recorda emocionada. Ela resistiu.

Com uma reforma de 300 euros (e muitos medicamentos para comprar), o leque de opções de Maria Alice era pequeno. Sem família a quem recorrer, pediu ajuda à autarquia — e ela acabou por chegar. Desfez a casa sozinha, destroçada, e rendeu-se a um T1 no Bairro de Santa Luzia, já perto da fronteira do Porto. “Esta casa é muito bonita e luminosa. Não gosto de me queixar. Mas as saudades que eu tenho...”

As saudades tem-nas também Ana Barbosa por antecipação. Deixar uma casa, sublinha, não é só despedir-se de quatro paredes. “É a vida das pessoas que está em causa.”

Nascida em Paredes, Ana chegou ao Porto há coisa de uma década. Viveu nos subúrbios clássicos da cidade, mas pouco a pouco foi fazendo do centro o seu mundo: “Combinava um café e vinha para o Porto, uma sessão de estudos com os amigos era no Porto... A dada altura fazia sentido morar aqui.” Estava 2012 a correr quando foi dar com um T1 + 1 na baixa e fechou o negócio: assegurando as obras da casa em mau estado, o senhorio aceitou fixar a renda nos 290 euros.

Tudo correu bem até finais de 2015. Nessa altura, o prédio ia perdendo gente. As abordagens informais, tentando saber se estaria disposta a sair, começaram. Ana anunciou que pretendia cumprir o contrato, com fim em 2020. Mas foi ficando cada vez mais só. No início de 2016 já só a sua casa, no 2º andar, e outra, no 4º, estavam ocupadas. Até que um dia, em Abril, a sua última vizinha lhe comunicou que ia sair.

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Ficou sozinha. Os donos do prédio não lhe esconderam o projecto: querem transformar os quatro apartamentos, um por andar, em oito. E não esperaram pela saída de Ana para dar início à ideia. A fachada esteve tapada por andaimes durante uns quatro meses. As obras no prédio onde Alice morou rebentaram um dia a sua escadaria. A água foi-se infiltrando. As caixas de correio foram retiradas e as cartas de Ana vão para o posto de correios dos Aliados, onde tem de ir periodicamente confirmar se chegou alguma coisa para ela (“Às vezes estou lá imenso tempo à espera e não há nada”). A campainha deixou de funcionar. A luz do prédio também.

Sempre que entra no edifício, liga a lanterna do telemóvel para subir as escadas, com uma sensação de desconforto instalada: “Só quando fecho a porta de casa é que me sinto segura de novo”, confessa. “Se vou para fora uns dias fico sempre a pensar que se acontece algo ninguém se apercebe. Sinto que é a minha casa, quero ficar. Mas ao mesmo tempo tudo o resto não é confortável. É difícil.”

Um T1 mais bonito mas menos casa

Alice conhece bem o sentimento de Ana. Foram tempos difíceis os que viveu no número 58 quando a porta de saída já se desenhava no horizonte. Mas naquele prédio com uma grua à frente ainda vê o seu cantinho: “A minha casa”, vai repetindo sem se aperceber, enquanto conta a vida que ali levava. A morada de Alice é agora num T1, mais bonito e luminoso, mas menos casa, menos bairro. “Lá vêem-se mais carros do que pessoas”, conta, sem deixar de realçar a gratidão de ter um tecto: “Sei que o que importa é ter casa. Até já fiz uma amiga, a vizinha do lado, onde passei o Natal. Mas não é a mesma coisa.”

Por isso, todos os dias se faz à paragem mais próxima, espera pelo 301, o 304 ou o 602, e segue de autocarro até ao seu Porto. Inscreveu-se num atelier de tempos livres, visita os ex-vizinhos, faz umas compras nos lugares de sempre, aos sábados vai à sua cabeleireira na Rua dos Bragas. “Se não venho para aqui todos os dias parece que morro”, diz.

A angústia do futuro já lhe tira o sono à noite. E quando as pernas falharem e não puder sair de casa como agora, o que fará? “Queria muito ir para um lar, mas para o do padre Jardim, para ser no centro”, conta como se de um segredo se tratasse.

O futuro tornou-se também uma angústia para Ana Barbosa. Na baixa criou a sua rede de apoio, com amigos que por ali moravam e também não tinham família no Porto. Mas a ordem de despejo caiu também em cima de alguns deles. Dois já se mudaram para a Senhora da Hora, em Matosinhos, conformados com os preços “impeditivos” do Porto. Estão a criar raízes fora da urbe, “provavelmente já não voltam”, analisa Ana, gestora de marketing em busca de emprego: “Eles eram a minha comunidade. Já pensei fazer o mesmo, claro. Quem me visita e vê o prédio e as condições que enfrento pergunta-me porque é que faço isto. É violento resistir”, conta. Não sabe por quanto tempo, mas para já continua, entre a falta de alternativas e o vestir de uma missão: “Se eu que tenho 28 anos não resisto, quem vai resistir?”

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