Pois reinventemos

Reinventemos, então. Mas reinventemos exactamente o quê, ou, o que é mais difícil, reinventemos como?

Seis vezes o Presidente invocou a palavra “reinvenção”: é preciso “reinventarmos o futuro” sabendo o que foi 2017; o ano que entra deve ser o dessa “reinvenção”; a reinvenção “é mais do que mera reconstrução material e espiritual” depois das tragédias; apelou por isso à “reinvenção da confiança dos portugueses na sua segurança” e à “reinvenção pela redescoberta desse, ou talvez mesmo desses vários Portugais esquecidos”; e concluiu que é preciso uma “reinvenção com verdade, humildade, imaginação e consistência”.

Reinventemos, então. Mas reinventemos exactamente o quê, ou, o que é mais difícil, reinventemos como? Se a tentação da beleza da forma não nos asfixiar, importa notar que o uso deste tipo de expressões deve ser cauteloso, raro e reservado para projectos verificáveis. Suponho que os leitores e leitoras têm a mesma sensação que eu quando passava por um cartaz eleitoral que, em letras garrafais, nos anunciava que o partido tal é “mudança”. Ou que se lembram que o anterior primeiro-ministro, da feliz coligação PSD-CDS, anunciou que cada um dos seus orçamentos — logo chumbados pelo Tribunal Constitucional — inaugurava o tempo de “viragem”. De todos estes eflúvios, sobrou pouca “mudança” e nenhuma “viragem”. As palavras esgotaram-se porque não eram nada.

Como fica então a “reinvenção”? Pois vejamos. Será Europa? Costuma ser, nada se faz em Portugal sem a referência espiritual a essa Europa mítica, mas de mão pesada. E na Europa não se fala de outra coisa, à boleia de Macron, mas também à boca pequena se anuncia tormenta: nem ministro das Finanças europeu, e lá saía Centeno da presidência do Eurogrupo, nem orçamento reforçado, antes empobrecido, nem líderes prometedores, é a vez de um banqueiro alemão para acabar com as frescuras do BCE. E depois há a Polónia e a Hungria e a República Checa nas mãos da direita facínora, e as eleições italianas disputadas entre Grillo e Berlusconi, e a crise catalã nas mãos de Rajoy. Reinvenção, nada, só desespero, com os eurocratas a convocarem tragédias, se em poucos meses não se fizer nem eles sabem o quê. Não, reinvenção não é Europa.

A bem dizer, nem é isso que o Presidente sugere. A leitura possível da sua “reinvenção da confiança” na segurança remete para a protecção das populações do interior e para a reforma da floresta, que tropegamente vai começando, e, porventura, para o funcionamento do Estado nas suas funções essenciais. Só que reinventar os serviços públicos e proteger os bens comuns exige, agora sim, uma dedicação estratégica que parece faltar na política portuguesa e que leva a que as tragédias sejam tratadas como sustos. Queremos um Serviço Nacional de Saúde com capacidade? Pois é preciso que haja compromisso de carreiras exclusivas, bem pagas, em medicina, enfermagem e cuidados especializados, e investimento técnico substancial. Queremos uma Justiça que não seja anedota na imprensa amarela? Pois é preciso magistrados e outros agentes que imponham respeito, que não torçam as regras, que investiguem antes de prender, que só usem a força do Estado quando for imperioso, que tenham tempo para decidir em cada caso para uma Justiça que cumpre prazos. Tudo isso custa dinheiro, custa competências e precisa de pessoas. Queremos uma Segurança Social que respeite os idosos? Custa pensões melhores e sobretudo apoios sociais dirigidos a quem precisa.

Aí, com franqueza, não é preciso reinventar, porque já sabemos o que nos espera. Bastou um imposto marginal sobre casas de valor efectivamente superior a dois milhões para se anunciaram manifestações dos indignados dos palacetes. Bastou uma taxa de solidariedade a pagar pelas empresas energéticas que vivem da renda garantida pelo Estado para o Governo ceder à chantagem da China. Ficamos mesmo com o problema da reinvenção: exige querer.

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