O sequestro da emoção

O futebol esteve nas últimas semanas no banco dos réus e seus dirigentes sob a ameaça de uma punição inédita.

O cronista brasileiro Nelson Rodrigues constatava que, em dia de jogo de Copa do Mundo, ocorria “uma suspensão temporária da vida e da morte”. Uma população inteira estaria com seus ouvidos grudados em um rádio de pilha, com o coração batendo no ritmo da narração que chegava pelas ondas. Em jogo estava uma disputa que superava qualquer outra prioridade de suas existências.

Para muitos dirigentes esportivos pelo mundo, é exatamente esse sentimento de tensão que prevalece neste momento. Mas o motivo não é a disputa de uma taça. Longe dos gramados e numa corte [tribunal] de Nova Iorque, o futebol esteve nas últimas semanas no banco dos réus e seus dirigentes sob a ameaça de uma punição inédita.

Dois anos depois das prisões dos membros da FIFA, em Zurique, praticamente todos os indiciados pela Justiça americana admitiram seus crimes e fecharam acordos de delação premiada. Três deles — o brasileiro José Maria Marin, o peruano Manuel Burga e o paraguaio Juan Napout — insistiam que eram inocentes e que, portanto, iriam se defender. 

Mas, à medida que o processo caminhou, ficou cada vez mais claro que não se tratava apenas de um julgamento contra três pessoas. Em jogo estava o futebol internacional, seus cúmplices e suas entranhas do poder.

Não eram poucos na FIFA que me diziam que estavam preocupados com o que poderia ser dito em Nova Iorque, à medida que a data do julgamento se aproximava. Hoje, tudo o que a entidade temia se transformou em realidade. Acusados e testemunhas passaram a usar a corte como um palco privilegiado para revelar o que supostamente ocorre no futebol, muito além da bola. Em suma: dirigentes passaram a tratar o futebol como sua propriedade privada, cobrando propinas [subornos] a qualquer um que quisesse fazer parte da milionária indústria do esporte.

O processo, por exemplo, atinge em cheio as pretensões do Catar de sobreviver como sede da Copa até 2022. O ex-dirigente argentino, Julio Grondona, morto em 2014, foi apontado como receptor de um milhão de dólares em troca de seu voto aos árabes para que pudessem sediar o Mundial. Ele era o presidente do Comitê de Finanças da Fifa e, em outras palavras, era o dono da chave do cofre da entidade.

Ao relatar o caso diante da juíza Pamela Chen, o empresário argentino Alejandro Burzaco revelou como Grondona lhe contou bastidores do dia da votação para escolher a sede das Copas. Nas primeiras rodadas da eleição, o então presidente da CONMEBOL, Nicolas Leoz, teria votado pelo Japão e Coreia do Sul como sede de 2022. No intervalo da reunião, Grondona e Teixeira chegaram até o paraguaio e o “chacoalharam”. “O que você está fazendo?” Quando o processo eleitoral foi retomado, Leoz mudou de comportamento e votou pelo Catar, para o alívio dos demais dirigentes. 

O Catar voltou a ser citado quando executivos indiciados por pagamentos de propinas confirmaram, diante do tribunal, que uma empresa do país do Golfo estava prestes a se associar com os agentes hoje acusados quando a crise estourou. Se não bastasse, na Europa, o dinheiro do Catar no futebol também está na mira da Justiça.

Na Suíça, investiga-se a corrupção do capital do Golfo na aquisição de direitos de TV para a Copa do Mundo. Na França, autoridades encontraram uma conta em Mônaco em nome do ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol, Ricardo Teixeira. Nela, recursos vindos do Catar teriam sido depositados.

Em uma conversa que eu mantive com o ex-presidente da FIFA, Joseph Blatter, em meados de novembro, ele confirmou que foi a vitória do Catar para sediar a Copa de 2022 que abriu o “caos” em sua instituição e no futebol. Segundo ele, havia um acordo de que o Mundial iria para os EUA. Mas o consenso “fracassou” depois da intervenção da política francesa, do Presidente da França (Sarkozy), que se encontrou no Palácio do Eliseu com o príncipe herdeiro do Catar, hoje o emir do país do Golfo.

“Depois daquilo, Michel Platini veio até mim e me disse: ‘Desculpe-me Sepp, não posso garantir mais meus votos para os EUA’”, contou. Blatter está convencido de que se o Catar não tivesse ficado com o Mundial, “não estaríamos nessa situação caótica”.

Mas, em Nova Iorque, o torcedor começou a descobrir que não são apenas os grandes eventos globais que podem ter sido comprados. Na América do Sul, executivos levados à corte como testemunhas relatam como pagaram milhões de euros em propinas em troca de contratos para torneios. Copa Libertadores, Copa Sul-Americana, Copa do Brasil, Copa América e tantas outras eram, no fundo, eventos que enriqueciam alguns poucos, alimentados pela paixão de milhões. Todos foram condenados e imediatamente levados a prisões federais americanas.

Não escaparam nem mesmo grandes grupos de imprensa do Brasil, Espanha e América Latina, citados como parte do esquema de corrupção. No caso da TV Globo, ela foi mencionada como tendo destinado supostas propinas para ficar com o direito de transmissão das Copas de 2026 e 2030. Todas as empresas citadas negam qualquer tipo de responsabilidade.

Mas o que o processo que terminou na sexta-feira, dia 22, revelou é que, de fato, uma paixão que mexe com um garoto no interior do Amazonas, na periferia de uma grande cidade europeia ou mesmo entre a camada mais privilegiada de um país foi sequestrada por um grupo de oligarcas da bola com um único objetivo: o enriquecimento próprio.

De forma infesta, usurparam uma das poucas coisas que é legítimo em um torcedor: sua emoção. A cada partida assistida em campo ou na televisão, em cada camisa comprada, em cada item adquirido, o torcedor aparentemente não financiou o futebol. Mas seus donos, em contas secretas em Andorra, Suíça e paraísos fiscais.

Desde criança, foi vendida a história a todos nós de que nossas seleções nos representam. Quando ganham, são recebidos como heróis nacionais numa conquista “do país”. Quando são humilhados em campo, é uma nação inteira que flerta com a depressão.

Nos próximos meses, estaremos todos de olho em nossos adversários na Copa de 2018. Faremos análises profundas sobre nossas chances de chegar até a próxima fase, estudaremos cada jogador dos “inimigos”. Sonharemos com uma final inédita entre Portugal e Brasil, em que o grito de “campeão” ecoe pelo mundo na língua de Camões e de Nelson Rodrigues.

Mas, longe de Moscovo, descobrimos numa corte americana que os verdadeiros adversários não estão do outro lado do campo. Estamos descobrindo que esse futebol, em alguns lugares do mundo, tem dono. E não é o torcedor. 

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