A inteligência artificial deu que pensar este ano. E dará em 2018

De casa ao trabalho, as máquinas inteligentes estão a multiplicar-se, espalhando muitas dúvidas – e alguns medos – nas mentes humanas.

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Aposta-se cada vez mais em carros autónomos BECK DIEFENBACH/REUTERS
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Elon Musk, fundador da Tesla: a empresa foi ilibada num caso de um acidente fatal com um seu carro autónomo Reuters/PATRICK T. FALLON
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Nos armazéns da Amazon são pequenas máquinas que organizam as prateleiras NOAH BERGER/REUTERS

Foi um ano em grande para a inteligência artificial. A tecnologia pôs os deputados europeus a discutir um rendimento básico universal para compensar o aumento da automação. Tornou-se imbatível em jogos de tabuleiro complexos, treinando apenas contra si própria e dispensando que lhe fossem ensinadas as estratégias desenvolvidas pela humanidade ao longo de séculos. Criou uma linguagem própria, com palavras da língua inglesa, quando o que os cientistas do Facebook pretendiam era que os programas de computador aprendessem a negociar entre si. Conduziu cada vez mais carros autónomos, levando especialistas a pensar em como programar os automóveis para agir em caso de mortes inevitáveis. Espalhou-se pelas casas de muitos utilizadores, graças aos assistentes virtuais enfiados nas colunas inteligentes de empresas como a Apple, a Amazon e o Google. Foi usada pela NASA para descobrir um novo planeta.

Este foi também o ano em que mais se falou sobre inteligência artificial. O interesse dos meios de comunicação, e do público em geral, aumenta à medida que a tecnologia sai dos meandros das universidades e das instalações industriais para entrar nos aparelhos que podem ser comprados numa loja ou na Internet. O número de pesquisas no Google não é um indicador de rigor científico, mas revela uma curiosidade crescente: as pesquisas por “artificial intelligence” aumentaram significativamente em 2017. Houve ainda mais pesquisas por “machine learning” (aprendizagem automática), uma área da inteligência artificial que permite aos computadores aprenderem a desempenhar tarefas sem que tenham sido programados explicitamente para isso (os algoritmos do Facebook aprendem a identificar o conteúdo de imagens analisando o texto com que os utilizadores as descrevem).

Portugal não é uma excepção nesta vaga de interesse. O PÚBLICO escreveu não menos de 58 artigos relacionados com o assunto. E o tema teve no final deste ano honras de serão televisivo, num debate no programa Prós e Contras, na RTP, que foi apresentado no site da estação com uma sinopse alarmista: “A inteligência artificial vai mandar no mundo! Está a humanidade preparada para o impacto que aí vem? Seres digitais versus seres humanos. Regulação é urgente!”

A inteligência artificial não é uma tecnologia nova. É estudada e desenvolvida por cientistas e académicos há muitos anos. Já em 1950 o matemático britânico Alan Turing, mais conhecido pelo seu trabalho de descodificação das comunicações alemãs durante a II Guerra Mundial, questionava se uma máquina poderia pensar e lançava a hipótese de se fazer com que as máquinas pudessem aprender, tal como acontece com as crianças.

“A investigação em inteligência artificial já tem mais de 60 anos e muitas das tecnologias agora usadas têm várias décadas”, observa ao PÚBLICO o académico Arlindo Oliveira, presidente do Instituto Superior Técnico e autor do livro Mentes Digitais. “Porém, reuniram-se, nos últimos anos e, especialmente, em 2017, um conjunto de condições que aumentaram muito a visibilidade e o impacto da área.” Para isto estão a contribuir vários factores, explica Oliveira. Por um lado, há a grande abundância de dados disponíveis e a “qualidade da informação que pode ser usada para treinar sistemas baseados em inteligência artificial”. Por outro, a disponibilidade de recursos computacionais através dos chamados serviços de cloud, que permitem às empresas desenvolverem produtos de inteligência artificial sem terem de comprar a dispendiosa infraestrutura de computadores. E há software poderoso, desenvolvido por empresas como o Google e a IBM, e que, em alguns casos, é disponibilizado livremente a quem o queira usar.

Para o entusiasmo mediático também ajuda a atenção que algumas celebridades têm dado ao assunto. Elon Musk, o excêntrico fundador da Tesla, refere-se frequentemente à inteligência artificial em termos que dão bons títulos nos sites de notícias – o que inclui tiradas sobre robôs assassinos com vontade de destruir a humanidade e outros cenários catastróficos. Muito mais moderado, o famoso físico Stephen Hawking gravou um vídeo para a abertura da Web Summit, que decorreu em Novembro em Lisboa, no qual disse ser “um optimista”. Mas também alertou para os riscos e desafios: “A inteligência artificial pode funcionar em harmonia connosco. Mas temos de estar a par dos riscos. Talvez devamos todos parar por um momento, e não apenas fazer com que a inteligência artificial seja bem sucedida, mas pensar em como a sociedade vai ser beneficiada.”

Uma inteligência artificial poderosa, com vontade própria e a revoltar-se contra a Humanidade é (pelo menos, durante longos anos) um cenário de ficção científica. Por ora, a tecnologia está a entranhar-se no dia-a-dia de forma muito menos agressiva: desde as sugestões de compras quando visitamos um site como a Amazon ou o eBay, até ao que é escolhido para ser mostrado a cada utilizador nas redes sociais. “Será, seguramente, uma adopção progressiva e quase invisível destas tecnologias no nosso quotidiano, de tal forma que daqui a meia dúzia de anos estas tecnologias serão francamente familiares”, antecipa Arlindo Oliveira.

Para o consumidor final, uma das encarnações mais familiares da inteligência artificial poderá ser os assistentes pessoais virtuais, que as multinacionais de tecnologia estão a tentar pôr dentro de milhões de casas e com os quais é possível interagir por voz. “Ok, Google, estou com febre”, e o assistente dentro da pequena coluna inteligente lista as farmácias e hospitais nas proximidades. “Ok, Google, conta-me uma anedota”, e uma piada de humor duvidoso salta do repertório da máquina. “Ok, Google, isso não teve piada”, e a resposta surge pronta e humanizada: “Gostava de conseguir ser mais engraçado.” Amazon, Apple e Microsoft também têm as suas versões destas colunas inteligentes. E, com algumas modificações, os assistentes também estão nos telemóveis, o mais pessoal de todos os equipamentos electrónicos.

Espalhar a tecnologia

Por ora, estes assistentes são sobretudo vocacionados para os mercados anglófonos (não é possível ter em português europeu aqueles diálogos com o aparelho do Google). Mas o plano das empresas é espalhar a tecnologia. A consultora Gartner estima que os consumidores em todo o mundo venham a gastar em 2021 perto de três mil milhões de euros em colunas inteligentes, cinco vezes mais do que em 2016. O que levanta questões de privacidade: aqueles aparelhos estão sempre a ouvir tudo o que dizemos, prontos a responder sempre que solicitados. 

Fora de casa, nas fábricas, armazéns e nas estradas, a inteligência artificial tem uma encarnação menos amistosa. Robôs cada vez mais capazes ameaçam um número cada maior de postos de trabalho, desde os empregos de operário aos de motorista. As pequenas máquinas com rodas que levantam grandes prateleiras em alguns armazéns da Amazon circulam com uma precisão e eficácia que nenhum humano conseguiria, passando umas pelas outras com escassos centímetros a separá-las. Este Verão, o Reino Unido deu luz verde para que sejam feitos testes com camiões autónomos em estradas reais. Na América do Norte, já há camiões semi-autónomos a circular.

Em Fevereiro, Bill Gates surpreendeu ao afirmar, numa entrevista ao site Quartz, que deveria ser cobrado um imposto sobre as empresas que recorram à automação. O empresário que se tornou o homem mais rico do mundo com uma das revoluções tecnológicas do século XX (a dos computadores pessoais) defendeu também que os processos de robotização deveriam ser propositadamente abrandados para que o mercado de trabalho tenha tempo de se adaptar. Pela mesma altura, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução sobre robótica com uma série de recomendações à Comissão Europeia. A ideia de debater aquele género de imposto e de pensar sobre um rendimento universal esteve em cima da mesa, mas acabou de fora das recomendações. Ganhou o argumento de que seriam entraves à inovação na Europa. Já em Portugal, a Assembleia da República promoveu um debate sobre o impacto da robótica na sociedade. 

Os carros autónomos também deram o mote para discussões difíceis. No essencial, a tecnologia para ter carros a andar sozinhos nas ruas já existe. Mas há múltiplas dúvidas legais. Quem é responsável em caso de acidente? O fabricante que programou o carro ou a pessoa que (sem as mãos no volante) está no lugar do condutor? Em Janeiro, as autoridades americanas ilibaram a Telsa no caso de um acidente fatal, em que o carro não conseguiu identificar um camião branco num dia particularmente luminoso e chocou de frente sem sequer abrandar. Valeu à empresa o aviso de que, mesmo com o piloto-automático, os condutores devem ter as mãos no volante e estarem prontos a intervir.

Outro problema é saber quem deve ser sacrificado no caso de acidente. O ocupante único do veículo ou o grupo de pessoas que estão a atravessar a estrada? A criança ou o idoso? Em Maio, a Alemanha – um país onde estão marcas como a Volkswagen, BMW e Mercedes, entre outras – chegou-se à frente. Reuniu um grupo de especialistas em ética e juristas, e acabou a aprovar uma lei: os carros têm de poupar o máximo número de vidas possível, sem fazer distinções. Mas quem comprará um carro que foi programado para, em algumas circunstâncias, sacrificar os ocupantes?

De casa ao trabalho, do transporte à privaciadade, a ascenção de máquinas inteligentes suscitou muitas dúvidas e apenas algumas respostas. A discussão continua em 2018.

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