O difícil governo da Saúde

As circunstâncias a que estamos a assistir podem fazer empalidecer os ganhos em saúde.

Quando há dias lemos os dados recém-publicados sobre a saúde, “OECD indicators”, temos motivos para exaltar o progresso notável do país, para o que contribuíram todos os avanços civilizacionais de uma sociedade com acesso à saúde, à educação, à rede de saneamento básico, de água potável e segurança social. Também foi determinante um relativo bom financiamento da saúde em relação à riqueza produzida, consequência de um entendimento supra partidário que encarou os gastos em saúde como um investimento. O empenhamento de todos os profissionais motivados pelas suas carreiras foi igualmente importante. Mesmo com o país intervencionado, manteve-se o essencial na acessibilidade à prestação pública, ao mesmo tempo que se desenvolveu uma prestação privada que complementou as dificuldades do SNS. Na verdade, encontraram-se soluções muito para além do que muitos dos habituais teóricos do SNS poderiam pensar ou desejar.

Não há bem que sempre perdure e as circunstâncias a que estamos a assistir podem fazer empalidecer os ganhos em saúde. A falta de recursos financeiros, a ausência de visão estratégica e o reinado dos complexos ideológicos profundamente provincianos mas sempre instalados junto do poder toldam um futuro incerto. As necessidades crescentes de uma população envelhecida, as doenças crónicas, a inovação, a maior exigência dos cidadãos e a nova medicina exigem meios que tornam obrigatória uma gestão rigorosa. Subtilmente vai-se empurrando para o cidadão e para os fornecedores de bens e serviços a assunção crescente de encargos diretos ou indiretos com a saúde. Mesmo assim, as dívidas do SNS crescem progressivamente e a penúria é testemunhada em surdina pelas administrações hospitalares e pelas empresas fornecedoras de bens e serviços. Uma dívida que se aproxima dos 2000 milhões de euros descredibiliza o SNS, o Ministério da Saúde e o Governo.

O aumento das listas de espera, as dificuldades na acessibilidade, a falta de cobertura de médicos de família, as restrições no acesso à inovação, a má manutenção dos equipamentos e estruturas são sintomas evidentes de deterioração que se disfarça com estatísticas de precisão duvidosa ou tecnicamente irrelevantes.

Paira um ambiente de crise que se vive nas organizações. Grande parte dos seus recursos humanos está desmotivada pelos baixos salários, pela ausência de incentivos e diferenciação positiva, pelos conflitos organizacionais e pela sobrecarga física e emocional. Como em qualquer organização mal gerida, as pessoas soçobram e são impelidas para o absentismo e sucessivos conflitos laborais. São alarmantes os níveis de ausência ao trabalho. Num dos maiores hospitais do país chega a ser de mil pessoas/dia.

Quando numa organização faltam diariamente entre 10 a 20% dos colaboradores, algo vai mal nesse reino. Trata-se de um mal que se agudiza mas tem uma natureza crónica que advém da estrutura organizacional do SNS. Teimar em mantê-la intocável, como alguns mistagogos conservadores defendem, ou acentuar a sua marca ideológica como outros teorizam, quando o SNS português tem por paternidade a democracia e a economia social de mercado, é criar um determinismo que vai conduzir ao colapso e cujas vítimas serão os mais frágeis da sociedade.

Os bons exemplos que indiscutivelmente vêm do setor privado deveriam estimular alterações no setor público tornando-o mais humano, centrado no doente e mais eficiente. Nem tudo são rosas no setor privado e muitas particularidades do setor público também deveriam ser assumidas pelo privado. As convergências serão inevitáveis e advirão da liberdade de escolha, do modelo de financiamento, da autonomia das organizações e da concorrência. Alguns responsáveis do SNS continuam a encarar a dinâmica da prestação privada como se se tratasse da vitória de uma atividade saprófita que tira médicos, doentes e dinheiro ao SNS. Estes gritos de desassossego acontecem sob um manto ideológico, protegido por uma teia de interesses ancorados na chamada superioridade moral de alguma esquerda ou na ignorância populista e clientelar da uma certa direita.

Este ambiente na saúde e no Estado tudo vai metamorfizando. A equipa dirigente do Ministério da Saúde, que foi um sinal de esperança pelo seu saber, está a revelar, de dia para dia, uma caquexia gritante — tal a falta de força política e incapacidade de se fazer valer. A autoflagelação com o divulgar do absentismo nos hospitais ou o aceitar introduzir o Infarmed num jogo de sombras políticas são sinais que fragilizam e tiram poder interno.

Se o dinheiro por má gestão, por cativações e suborçamentação, não chega para as necessidades de diagnóstico e tratamento da doença, muito menos é suficiente para a prevenção da doença, para a educação para a saúde, para a promoção da velhice ativa, para os cuidados continuados e paliativos e para a inovação. O financiamento público da saúde, que é dos mais baixos da OCDE (apesar do privado ser o mais alto), não chega para manter os altos padrões de indicadores de saúde.

Nas atuais circunstâncias, ser dirigente em Saúde é um risco. Os poderes na saúde são muitos, diferentes e com forte afirmação. Para os conciliar não basta ter discurso fluido e dialogante. É necessária uma estratégia segura, uma demonstração de que se usufrui de respeito e poder no contexto governativo e que force a mobilização de recursos para manter e melhorar as necessidades em saúde dos portugueses. Caso contrário não passará de um “buffer” de conflitos que sucessivamente vão tirando valor ao património que é o nosso sistema de saúde.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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