Há 24 processos pendentes no Constitucional que voltam à estaca zero com a nova lei

TC não decidiu nenhum processo de financiamentos políticos em 2017. Contas anuais e de campanhas desde 2013, coimas por decidir relativas a 2009 e anos seguintes e processos de omissão desde 2014 terão de voltar à Entidade das Contas. Alguns, entretanto, podem prescrever.

Foto
Costa Andrade ainda só julgou dois processos de financiamentos desde que preside ao TC evr enric vives-rubio

Em 2017, nenhum processo de financiamentos políticos foi decidido pelo Tribunal Constitucional (TC), apesar de ter em mãos nada menos do que 24 processos. Por decidir estão os processos relativos às contas anuais dos partidos de 2013 e 2014, às coimas a aplicar por irregularidades nas contas anuais entre 2009 e 2012, às contas de todas as campanhas eleitorais desde 2013 e respectivas coimas e ainda os processos por omissão de contas e as suas multas desde 2014.

Estes processos pendentes já contam com relatórios da Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) que, à luz da lei ainda em vigor, tem a competência de elaborar os pareceres sobre os quais o plenário do TC deve decidir. Com a alteração de competências agora aprovada, que atribui à ECFP a responsabilidade de investigar as irregularidades e aplicar as coimas, e a norma transitória que faz aplicar a nova lei a todos os processos pendentes ainda não julgados, o resultado é todos os processos pendentes no TC voltarem todos à estaca zero.

Por outras palavras, sobre estes 24 processos, a ECFP terá que transformar os pareceres que deu em autênticas decisões. O que só por si já é de constitucionalidade duvidosa, como disse ao PÚBLICO a antiga presidente da Entidade, Margarida Salema: "Um órgão que emitiu um parecer sobre um processo não pode decidir sobre a mesma matéria, sob pena de violação do princípio da legalidade de competência". 

Por outro lado, sobre cada uma dessas decisões, cada partido pode recorrer para o plenário do TC, o que arrisca aumentar em muito a litigância por causa dos financiamentos políticos. Acresce que os prazos de prescrição deste tipo de processos (de contraordenação, de que resultam coimas) são curtos: um ano com coimas até 2493 euros, três anos entre aquele valor e um pouco menos de 50 mil euros e cinco anos de valor superior. Existe, pois, o risco de prescrição nalguns casos, consoante a forma como for contado o prazo de prescrição.  

Desde que assumiu funções como presidente do TC, em Setembro de 2016, Manuel da Costa Andrade só assinou dois acórdãos relativos a financiamentos partidários. Um é relativo às coimas a aplicar aos partidos por irregularidades na campanha eleitoral da Assembleia Legislativa da Madeira em 2011; e o outro diz respeito à extinção de procedimento contra-ordenacional contra a mandatária financeira do PPM referente às autárquicas de 2009.

Só as coimas aplicadas no último acórdão do TC (669/16), relativas às irregularidades cometidas na campanha legislativa da Madeira em 2011, somam 53.050 euros, distribuídas por oito partidos. Quase todos os partidos que concorreram foram condenados a coimas entre os cinco mil (PAN) e os nove mil euros (PTP), além das aplicadas aos respectivos mandatários financeiros, que vão de 650 até três mil euros (também ao PTP).

São 13 os processos de coimas pendentes e, embora não seja possível verificar os valores propostos pelo Ministério Público nesses casos, a soma dos valores a pagar pelos partidos poderá com facilidade ascender a centenas de milhares de euros. São esses montantes que agora ficam em risco com a lei aprovada na semana passada.

A pedra-de-toque que leva a este revés na fiscalização das contas dos partidos e das campanhas é a norma transitória – o artigo 7.º -, que faz aplicar as novas regras a todos “os processos novos e aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor que se encontrem a aguardar julgamento”. Ou seja, determina a retroactividade da lei a estes processos, mas também a quaisquer outros que se encontrem noutros tribunais, incluindo os administrativos e fiscais.

No entanto, tanto a secretária-geral adjunta como o líder do PS têm contrariado este entendimento. Na quinta-feira, Ana Catarina Mendes afirmou, em conferência de imprensa, que a lei se aplica apenas aos processos pendentes no Tribunal Constitucional (ou seja, estes 24). Mas a lei não explicita esta restrição.

Esta sexta-feira, António Costa também recusou que o diploma tenha efeitos retroactivos relativamente a "processos de cobrança pendentes". "Não se aplica, não tem nenhuma retroactividade. Portanto, tenho visto muita discussão com base em pressupostos que não correspondem à realidade", disse, após visitar o Presidente da República no hospital.

A verdade é que esta norma transitória que estipula a retroactividade da lei não estava em nenhuma das propostas inicialmente apresentadas pelos partidos e não consta da versão final do diploma apresentado pelo grupo de trabalho. E não é caso único.

Outros artigos-surpresa

Artigo 7º - Estabelece a retroactividade da lei, algo que não estava previsto na versão final do grupo de trabalho. Havia uma proposta inicial (desconhece-se de que partido, pois as propostas surgem apenas com as letras A, B ou C) que sugeria essa retroactividade, mas mesmo assim excluía os processos pendentes já julgados e que se encontrassem a aguardar a aplicação de coimas. A estes aplicava-se a lei anterior, e isso excluía de imediato os processos de coimas dos partidos nas contas de 2009 a 2012 e as coimas da campanha legislativa dos Açores de 2012. Mas essa salvaguarda não ficou na versão aprovada.

Artº 14º da lei 19/2003

Os candidatos a Presidente da República passam a ser obrigados a dispor de um número de identificação fiscal próprio e passa a ser-lhes aplicável o conjunto de direitos e obrigações de natureza fiscal que têm os partidos. Esta ideia surge apenas na versão final do grupo de trabalho, não constando antes da proposta de nenhum partido.

Artº 8º-A – aditamento à lei 19/2003

É um artigo totalmente novo aquele que passa a permitir a cedência gratuita, aos partidos e às campanhas eleitorais, de espaços públicos - do Estado ou geridos por ele, de autarquias, empresas públicas e participadas ou entidades de economia social. Nenhum partido tinha proposto por escrito esta norma que, parecendo simples, era um pomo de discórdia entre o TC e os partidos (e levava a coimas). Há mesmo processos pendentes, como aquele em que é arguido o dirigente do PSD Miguel Pinto Luz, juntamente com outras quatro pessoas, por terem cedido, enquanto autarcas, a utilização de uma sala do Centro Olga Cadaval à convenção autárquica do PSD em 2012. 

Para mostrar como o assunto é importante, o legislador acrescentou ainda uma coima nova (e pesada) às pessoas colectivas e seus administradores que violarem o disposto nesse novo artigo, o que sugere que a cedência não será apenas gratuita, mas também obrigatória.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários