Ter um filho sim, partilhar casa não

Mais de 17% dos bebés que nasceram no ano passado não tinham os pais a viver sob o mesmo tecto. Mais do que efeito da emigração forçada pela crise, esta percentagem traduz uma nova realidade: a dos casais que, mantendo relações estáveis e duradouras, preferem viver cada um na sua casa.

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Daniel Rocha

É uma tendência muito pouco estudada, que leva os cientistas sociais a coçar a cabeça: que novas realidades se escondem por detrás dos 17,1% dos bebés que, no ano passado, nasceram de pais que não vivem juntos? Podem ser filhos de casais cujo marido foi empurrado pela crise para o estrangeiro ou de mulheres que decidem avançar sozinhas no projecto de ser mães. E podem, inclina-se mais a demógrafa Maria João Valente Rosa, ser expressão de uma nova forma de viver a conjugalidade e a parentalidade que já não passa por partilhar a mesma casa.

“Quando engravidei a primeira vez, estava numa relação bastante superficial em que nunca tínhamos equacionado a coabitação. Decidi avançar e perguntei ao pai se ele queria ou não ser pai dessa criança. Disse-me que sim, mas nunca se pôs a questão de vivermos juntos, porque o mais certo era que a história da minha filha ficasse marcada por discussões e muito provavelmente abandono”, conta Ana (nome fictício), uma professora, de 43 anos. “Preferi criar uma relação de segurança e estabilidade com ela naquilo que podia garantir que era o meu empenho no meu papel de mãe.”

Não fosse ter-se dado o caso de a relação amorosa ter-se entretanto esvaído, esta professora aproximar-se-ia muito nas suas circunstâncias daquilo que Maria João Valente Rosa qualifica como “famílias solitaristas”. “Estamos perante um novo fenómeno em que a parentalidade não só já não pressupõe o casamento — e note-se que mais de 52% dos bebés já nascem fora do casamento —, como também já não pressupõe a coabitação”, precisa a investigadora.

É o chamado living apart together: um modelo já muito disseminado em vários países em que as pessoas mantêm relações afectivas estáveis e duradouras sem, contudo, viverem na mesma casa. “É algo estranho para a maioria de nós, mas, em França, por exemplo, é muito comum as pessoas terem relações permanentes com cada um no seu sítio”, acrescenta Valente Rosa. Em Portugal, diz, começam agora a emergir estas “famílias solitaristas”, cujos pressupostos não incluem a coabitação.

Se recuarmos uma década, em 2006, dos 105.449 bebés nascidos com vida, 33.331, ou seja, 31,6%, nasceram fora do casamento — os pais não estavam casado. Mas apenas 6,3% das crianças não os tinham a viver sob o mesmo tecto.

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No ano passado, a percentagem aumentou para os referidos 17,1%, o que equivale a dizer que, dos 87.440 bebés que as estatísticas contabilizam, 14.920 nasceram sem coabitação dos pais.

“Evolução consistente”

“Em Portugal, estas mudanças, no caso dos comportamentos face à parentalidade, costumam ocorrer com uma aceleração incrível”, sublinha Valente Rosa, enquadrando o que admite ser uma nova tendência com uma nova forma de partilhar, espaços incluídos, “sem estarmos fisicamente presentes”.

Quando este fenómeno começou a ser notado, a crise e, consequentemente, a emigração, foram as explicações imediatamente encontradas. E que, de resto, continuam a ser válidas, na opinião de especialistas como Vanessa Cunha. “Este aumento de nados vivos que nasceram sem a coabitação dos pais acentuou-se em contraciclo com a queda dos nascimentos. Se falássemos de um contexto de prosperidade económica, admitiria que pudessem estar aqui muitas mulheres que chegaram a uma certa idade e decidiram ter filhos, ainda que sem parceiro. Não rejeitando que estas situações ocorram, não me parece que expliquem o todo”, introduz a socióloga para concluir que, sendo o contexto fortemente marcado pela emigração masculina, “e de homens em idade de ter filhos, o mais provável é que a falta de coabitação destes pais não seja voluntária mas forçada”. Forçada “pela emigração e pela incapacidade dos casais em emanciparem-se dos pais e arranjarem domicílio conjunto”.

Porque é que Valente Rosa privilegia o solitarismo mais do que o peso da emigração masculina? “Porque, se assim fosse, teríamos oscilações e picos nos piores anos da crise, e não esta evolução consistente”, responde. De facto, mesmo com o garrote da crise a abrandar e a emigração a diminuir, a percentagem de crianças nascidas fora do casamento e sem coabitação dos pais continuou a aumentar: de 15,8% em 2014 para 16,3% do ano seguinte e para 17,1% no ano passado.

É, concordam as duas especialistas, uma tendência à espera de ser mais bem escrutinada, e que, provavelmente, os censos de 2021 ajudarão a desvendar melhor. Enquanto estes não chegam, a presidente da Associação Portuguesa de Demografia, Maria Filomena Mendes, também tende a dissociar esta nova tendência da crise económica. “É verdade que o último inquérito à fecundidade feito em 2013 mostra que os portugueses querem ter, pelo menos, um filho e o facto de a crise os ter apanhado no limite da fertilidade levou muitos casais a optarem por ter esse filho — mesmo que, nesse momento, não estivessem a coabitar.”

Mas, passada a turbulência económica, e os piores anos de desemprego e precariedade laboral, a demógrafa considera que estes 17,1% podem indiciar uma abertura da sociedade a “novos comportamentos face à parentalidade”. Alguns, eventualmente, desencadeados pela própria crise. “As pessoas podem ter-se habituado a determinadas circunstâncias e a uma nova autonomia para que foram empurradas pela crise”, admite.

Romantismo e pragmatismo

Por outro lado, o facto de 66,6% dos 14.920 bebés que no ano passado nasceram sem coabitação dos pais serem primeiros filhos pode encerrar algumas pistas importantes. “O inquérito mostrou-nos que, no momento de se avançar para o segundo filho, a presença do pai é importante e reivindicada, muito mais do que no primeiro”, lembra Maria Filomena Mendes.

“O primeiro filho pode nascer mesmo que as circunstâncias estejam longe de ser as tidas como ideais”, prossegue a especialista. “Uma pessoa pode ter o companheiro a trabalhar e a viver longe ou no estrangeiro que não deixa de ter um filho por causa disso.”

Mas, quando se trata do segundo filho, “as mães tendem a reivindicar mais a presença dos pais, porque a conciliação trabalho-família torna-se mais difícil, a gestão do tempo também e as tarefas têm de passar a ser mais divididas”, continua, para lembrar que este reforço da importância atribuída ao papel e à presença do pai é reivindicado também pelo lado masculino da equação, a partir do segundo filho.

A história de Ana parece dar-lhe razão. Depois de ter decidido ter a primeira filha sozinha, sem a presença quotidiana do pai, optou por não repetir a experiência quando, uns anos depois e já numa nova relação igualmente sem coabitação, teve a segunda filha. “Ter uma criança de oito anos e um bebé sozinha significaria que não ia conseguir tomar banho, nem comer, nem dormir. Já tinha passado pela experiência. E, meio a brincar, costumava dizer à minha mãe: ‘Não volto a dar banho a uma criança sozinha.’”

Assim, apesar de, por opção, Ana ter voltado a passar pela gravidez sem coabitar com o pai da sua segunda filha, quando saiu da maternidade com o segundo bebé nos braços decidiram, ela e o companheiro, passar a partilhar o mesmo tecto. Desta coabitação, nasceu entretanto outra bebé, a terceira filha de Ana e a segunda do seu actual companheiro. “A relação em casas separadas”, recua, “era vivida de forma mais intensa, quando estávamos juntos, dedicávamo-nos inteiramente um ao outro.” Uma casa partilhada e duas filhas depois, como é? “Passamos mais de 90% do nosso tempo a discutir questões logísticas”, ri-se, sem problemas em declarar que a coabitação “foi decidida pelo nascimento das filhas e pela logística” que lhes está associada.

Pode parecer “pouco romântico”, reconhece Ana, mas os dois lidam muito bem com isso: “Não exclui em nada todo o afecto que temos um pelo outro. Mas sabemos das nossas diferenças. Os dois precisamos de espaço. Tudo isto poderia ter-se tornado um problema, se não tivéssemos sabido resolvê-lo.” Com a necessária dose de pragmatismo. 

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