Eu vi 2018, e vai ser um ano das mulheres

O gesto de Anna Muzychuk vem no fim de um ano que pode ter sido decisivo para as mulheres em todo o mundo — e a luta pelos direitos humanos das mulheres é, como todas as lutas de direitos humanos, uma luta global.

O PÚBLICO noticiou esta semana que Anna Muzychuck, uma xadrezista ucraniana que é campeã mundial em duas categorias da sua modalidade, preferiu perder os seus títulos do que aceitar competir na Arábia Saudita. Escolheu perder os títulos porque escolheu, como escreveu no Facebook, “não vestir a abaia, não ser acompanhada por um homem quando saísse à rua e, em geral, não me sentir como se fosse uma criatura secundária”.

Ao recusar participar do maior evento xadrezístico mundial, Anna Muzychuk perderá o dinheiro equivalente ao que ganharia em 6 ou 7 eventos correntes. Pouca gente optaria pelos seus princípios numa situação destas. Anna Muzychuk é certamente digna de louvor e admiração por ter conseguido fazê-lo. Mas a questão maior é: como é possível que a Federação Internacional de Xadrez sequer admita forçar as suas atletas mulheres a fazer a escolha entre competir ou manter a dignidade?

Com a sua atitude, Anna Muzychuk pode ter dado o sinal de partida para um boicote à Arábia Saudita pelas sistemáticas violações de direitos humanos de que são vítimas as mulheres naquele país. No imediato, o que é importante é que haja pressão social para que eventos deste género deixem de se realizar na Arábia Saudita, como no tempo do apartheid houve um boicote generalizado à África do Sul. Boicotar a Arábia Saudita nada tem a ver com intervencionismo; muito pelo contrário, o princípio subjacente a um boicote destes é o da não-colaboração. Ninguém pode ser obrigado a prestigiar ou a enriquecer a Arábia Saudita com a sua presença, e dessa forma acabar por branquear a forma como se tratam as mulheres no país.

O gesto de Anna Muzychuk vem no fim de um ano que pode ter sido decisivo para as mulheres em todo o mundo — e a luta pelos direitos humanos das mulheres é, como todas as lutas de direitos humanos, uma luta global.

Nos EUA e um pouco por todo o Ocidente, houve este ano uma revolta contra outro tipo de violação generalizada da dignidade, da liberdade e da segurança das mulheres: aquela que subsiste em muitas sociedades desenvolvidas e na qual milhões de nossas concidadãs são sujeitas a assédio sexual no local de trabalho, na academia, nas artes ou no desporto. Em 2018 esse movimento não deverá, não poderá, deter-se. A ele devem juntar-se também cada vez mais homens, porque é intolerável para qualquer pessoa com sentido de justiça que tantas mulheres sejam rebaixadas, traumatizadas e prejudicadas durante grande parte do seu percurso profissional.

E Portugal? Comecei este ano com uma crónica em que dizia “eu vi 2017, e vai ser só homens”. Referia-me ao mau hábito que este país tem de convidar quase só homens para todo o tipo de debate “sério” político, académico ou jornalístico. Infelizmente, não me enganei, porque assim continuámos sem dar grande importância à paridade. Poderia também facilmente ter previsto que a preocupação com este tema, como com qualquer outro tema da igualdade de género, seria incompreendida, atacada e vilipendiada como não passando de uma picuinhice à qual não se deve dar muita atenção ou importância.

Mas não é possível que a intensificação do movimento global pelos direitos humanos das mulheres não chegue a Portugal. Há alguns bons sinais disso, infelizmente ainda incompreendidos, mas em breve chegaremos ao tempo em que ser feminista seja a posição de base de toda a sociedade. Já não estamos no tempo em que os movimentos de progresso geral da humanidade chegavam ao nosso país com décadas de atraso. Se tenho um desejo para Portugal em 2018 é que chegue decisivamente até nós a revolução das mulheres que foi a melhor notícia do ano que agora fecha.

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