O barco vai de saída

Maria João Gaspar e José Filipe de la Fuente estão a bordo do Royal Mail Ship. Este é o relato da última viagem do navio até Tristão da Cunha, ilha perdida no Atlântico Sul.

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Adeus ao Cais E do porto da Cidade do Cabo. Despedimo-nos da Table Mountain, até daqui a quase um mês, e embarcamos na penúltima viagem do RMS St Helena, o único navio do mundo com a designação oficial de Royal Mail Ship que ainda efetua serviço de correio.

No passado dia 14 de outubro, o primeiro voo comercial aterrou em Santa Helena, no Atlântico Sul, pondo fim a cinco séculos de isolamento. Com a chegada do avião, termina também uma era: o RMS deixará de operar; a viagem para Santa Helena passa a demorar sete horas em vez de cinco dias; e Tristão da Cunha continuará a sua existência solitária, sem qualquer ligação regular ao resto do Mundo.

Santa Helena, Ascensão e Tristão da Cunha são um território ultramarino Britânico, um dos últimos vestígios, hoje quase esquecidos, daquele que foi o maior império mundial. Descobertas por navegadores Portugueses entre 1501 e 1506, são minúsculos pontos na grande mancha azul e quase vazia do mapa do Atlântico Sul. Muito distantes entre si, as ilhas estendem-se ao longo de 3600 km, dos 7º 56’ S de latitude da ponta Norte de Ascensão aos 40º 19’ S do extremo Sul de Gough, uma das ilhas desabitadas que rodeia Tristão. E foi precisamente o isolamento que determinou a única e breve fama destas paragens; em 1815, Santa Helena foi o local escolhido pelos ingleses para exilar Napoleão, derrotado em Waterloo, que aqui permaneceu até morrer.

Até à abertura daquele que os jornais ingleses gostam de designar como “o mais inútil aeroporto do mundo”, a única forma de chegar a Santa Helena era de barco. Cinco dias de barco, no mínimo. Com exceção de alguns iates em escala trans-Atlântica, todas as pessoas que chegaram à ilha nos últimos 50 anos foram transportadas pelo RMS St Helena. Tal como tudo o resto, de automóveis a ovelhas, de perús de Natal a mobílias, de alfaces a tijolos. Mais a Sul, muito mais a Sul, Tristão da Cunha, onde atualmente vivem 259 pessoas, é o território habitado mais isolado do mundo: a sua única povoação, com o nome algo poético de Edimburgo dos Sete Mares, dista 2500 km da localidade mais próxima (Jamestown, em Santa Helena), 2800 km de uma cidade de grande dimensão (Cidade do Cabo, na África do Sul) e 9800 km da capital do país a que pertence (Londres).

Esta é a segunda vez que fazemos a penúltima viagem do RMS St Helena, um navio cujas notícias da morte foram, até agora, francamente exageradas. Em agosto de 2016, o anúncio da eminente abertura do aeroporto em Santa Helena chamou a nossa atenção para um lugar que até então desconhecíamos, e fez-nos decidir, num impulso, que não podíamos perder um barco que todos julgavam o (pen)último. Problemas de segurança causados por gradientes de vento (windshear) obrigaram, entretanto, a adiar a data prevista para o início dos voos comerciais e a manter o RMS em navegação. Um ano mais tarde, um novo impulso levou-nos a agarrar uma das muito raras oportunidades para chegar a Tristão da Cunha numa viagem que é, esta sim, definitivamente a penúltima para Santa Helena e a última a incluir Tristão.

Durante 15 dias viveremos as rotinas de passageiros e tripulação, num micro-cosmos feito de uma muito britânica mistura de pragmatismo e requinte. Durante outros nove visitaremos Tristão da Cunha, onde uma pequena comunidade, descendente de apenas nove famílias de colonizadores iniciais, administra sabiamente recursos escassos, sob uma forma muito própria de organização social e económica. E regressaremos a Santa Helena, onde percorreremos picos e escarpas vulcânicas nos Post Box Walks; visitaremos o túmulo de Napoleão, em solo zelosamente administrado por um Cônsul Francês; saudaremos o animal mais velho do mundo, a tartaruga Jonathan e os seus 184 anos; e retomaremos o contacto com os Saints, tentando perceber quais as suas expetativas para um novo tempo que agora começa. Ao longo das próximas semanas, tentaremos levar aos leitores do Público - tão depressa quanto uma ligação de internet via satélite pouco fiável e ridiculamente cara o permitir - algumas das muitas histórias que rodeiam estes lugares especiais.

Nesta viagem seremos testemunhas do fim de uma era, uma era onde ainda há locais onde não se chega depressa. Venham connosco. Sem grande pressa de chegar.

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