O ano do Presidente-Rei

O ano de 2017 foi sem dúvida o ano de Marcelo Rebelo de Sousa e foi-o não apenas à boleia das tragédias do Verão.

As perguntas sobre as razões que levam o Presidente-Rei a estar em todo o lado todos os dias já cansam por manifesta falta de resposta. O queixume sobre a paciência dos portugueses para o ver neste permanente carrocel de beijos, selfies e outros afectos amores tornou-se tão banal que já ninguém o ouve. A denúncia sobre o seu putativo excesso de protagonismo no drama dos incêndios converteu-se numa espécie de capricho de intelectuais que o povo sereno e carente de proximidade não tem paciência para levar a sério. Marcelo atravessou todo o ano neste infernal circuito de idas, vindas, afagos às criancinhas e festinhas na cabeça dos idosos porque a sua omnipotência lhe sustenta o luxo de ser omnipresente. Nenhum político das últimas gerações, fosse Presidente ou primeiro-ministro, aguentaria esta sobreexposição.

Marcelo resiste e reforça-se nessa resistência aos olhos dos portugueses porque soube resolver uma equação difícil: faz-se passar por um português normal sem perder a majestade do seu cargo e das suas funções. O Presidente foi escolhido como figura do ano pela redacção da RTP, pela classe jornalística em geral, pelos analistas políticos e pelos intervenientes dos fóruns matinais da rádio porque se tornou no eixo sobre o qual gira a vida política. Se ele passa o teste de estar nas televisões a cada passo e se não gasta a sua imagem em beijos, abraços ou em voltinhas no carrocel é porque dispõe de capital mais do que suficiente para suscitar a nossa condescendência com essa teatralização. A ele, todos os excessos se perdoam porque por regra tudo se perdoa a quem é útil, necessário e importante. E Marcelo Rebelo de Sousa é útil, importante e tem sido necessário.

É útil porque tem sido o principal garante da estabilidade política que o país viveu nestes últimos dois anos depois da traumática experiência do ajustamento e da troika. Foi nele que António Costa e o Governo encontraram o amparo necessário para poderem negociar orçamentos com a esquerda-extrema sem que fossem obrigados a arriscar a sua moderação e o seu compromisso com as regras europeias do euro e do Pacto de Estabilidade. O primeiro-ministro namorou-o ao ponto de o proteger da chuva na célebre cerimónia do 10 de Junho em Paris porque precisava de uma força externa para mostrar cartões amarelos sempre que o Bloco ou o PCP saíssem do padrão de responsabilidade fiscal inscrito no programa do Governo. António Costa tolera o seu protagonismo e deixa-se até apagar porque, pragmático como é, sabe que sem o Presidente ao seu lado não há “geringonça” que resista.

Quando António Costa deixa descair o pé do chinelo da responsabilidade orçamental, como aconteceu há pouco com a questão do tempo de congelamento das carreiras dos professores, Marcelo surge em cena a riscar linhas vermelhas. Mas, o que podia parecer um puxão de orelhas do professor zeloso ao aluno relapso não passa de uma encenação estudada e consentida. Costa não se zanga e aproveita a deixa para dar razão ao recado do Presidente-Rei porque para ele é mais fácil sinalizar limites aos parceiros por interposta pessoa do que em resultado de uma deliberação política pessoal. A utilidade do Presidente ao Governo acaba aliás por ser reconhecida. O primeiro-ministro pode ficar com as orelhas vermelhas por causa de tantos avisos, mas não reage ou se reage é para pedir desculpa e sublinhar a pertinência dos reparos de Marcelo.

Marcelo é necessário porque, por estilo pessoal ou por opção consciente, soube trazer ao país o registo de distensão, de convicção e de expectativa que o país carecia depois dos anos de chumbo da troika. Fê-lo de duas formas básicas. Por via das palavras e da proximidade com os portugueses mais vulneráveis ou menos protegidos. Por vezes, como aconteceu com a exigência de mais apoio para os sem-abrigo, ultrapassou o Governo pela esquerda. Fê-lo também quando assumiu o papel de supremo magistrado disposto a actuar sempre que o executivo se dispôs a assobiar para o lado em momentos de profunda comoção colectiva, como aconteceu depois da segunda vaga de incêndios dramáticos em Outubro. Marcelo é um Presidente-Rei (sem a mácula do populismo iliberal do primeiro dono do cognome, Sidónio Pais) porque foi capaz de criar nos cidadãos a ideia de que ele está do seu lado, é um deles e jamais deixará que o poder se exceda em abusos ou se perca em desatenções.

O Presidente é importante porque se tornou um referencial de segurança no sistema. Talvez seja excessivo dizer que ele reinventou o semipresidencialismo, mas é inegável que lhe instilou uma interpretação muito pessoal. Ele sabe e insiste que sabe no domínio do Parlamento na organização do regime, mas nunca deixou de se inspirar nos princípios constitucionais que outorgam ao Presidente uma supremacia tácita no balanço dos diferentes poderes. Por isso ele vai muito para lá dos avisos sobre o eleitoralismo do próximo orçamento; pode dar-se ao luxo de endurecer até as palavras sempre que percebe que o exuberante optimismo de António Costa precisa de ser travado. Por isso ele sugere leis, estabelece limites, força mudanças de atitudes e condiciona o Governo com a sua própria agenda. Sem a sua perseverança, o drama dos incêndios teria provavelmente ficado esquecido.  

O ano de 2017 foi sem dúvida o ano de Marcelo Rebelo de Sousa e foi-o não apenas à boleia das tragédias do Verão. Foi-o porque ele hoje é o dono do maior pecúlio de capital político do país. Esse poder tem sido precioso para amparar António Costa nas suas batalhas para manter de pé uma solução de Governo que, à semelhança do violino de Juan Peron, se pega com a Esquerda e se toca com a Direita — ou, mais justamente, no centro das políticas europeias. Nas discussões da Caixa e da normalização do sistema financeiro, nos fogos, nas políticas públicas, na Autoeuropa ou nas negociações da Função Pública ele é dono de uma voz que tem de ser ouvida. Querer fazer dele um almirante corta-fitas como Américo Tomás é um disparate. Marcelo tem poder e exerce-o.

Não sabemos o que vai trazer de novo ao actual equilíbrio político a nova liderança do PSD — pelo que se tem visto, talvez nada. Não sabemos se o esticar da corda de um Bloco e de um PCP incomodados por servirem de bibelots ao sucesso do PS nas sondagens vai trazer à vida política níveis de tensão insustentáveis. Sabemos sim que Marcelo tudo fará para que esta legislatura se cumpra. E sabemos também que, com ele, não há riscos de a ala mais à esquerda do PS, em aliança com o Bloco e o PCP, virem a impor as suas visões. Ele fala de mais, aparece de mais, distribui afectos a mais, dá beijos e tira selfies a mais. Pois muito bem. Já tivemos um Presidente sisudo e deu no que deu.   

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