O relativismo da moral global

Frequentemente os militantes “sociais” mais ruidosos são os mais insensíveis, exibindo uma preocupação que é estranhamente seletiva.

Sempre existiram no mundo diferenças de valores, de sensibilidades e de referências morais. Mas talvez mais grave que esse facto é a generalizada desonestidade intelectual com que uns e outros tratam e avaliam os problemas da sociedade contemporânea, nacional e internacional. A moral e a ética são esgrimidas ao sabor dos interesses de cada um.

Uns condenam Pinochet enquanto aplaudem Estaline que matou 20 milhões de inocentes ou Mao que matou 12 vezes mais seres humanos que a guerra do Vietname. Outros, que defenderam Pinochet, apoiaram a continuação do afrontamento americano à ditatorial Cuba, cujo embargo foi uma aberração e uma imoralidade.

Sindicalistas portugueses condenam a deslocalização de investimentos de Portugal para países onde a mão-de-obra é mais barata. Mas é esse fluxo de investimento para países menos desenvolvidos que impulsiona o seu crescimento e o aumento da qualidade de vida e do rendimento das populações mais pobres. Quando Portugal, durante décadas, se passeou pelo mundo a mendigar investimento estrangeiro conseguiu-o porquê? Por isso mesmo, porque apesar de alguma modernização, Portugal continua a ter a mão-de-obra mais barata e mais mal paga da Europa Ocidental. E qual é o investimento que foi entretanto captado? O que se encontrava em países com mão-de-obra mais cara que a nossa e que foi deslocalizado para o nosso país por a nossa ser mais barata. Lá se vai a coerência dos sindicalistas. Se se trata de puxar investimento para Portugal, privando trabalhadores de países mais ricos desses postos de trabalho, tudo é moral. Mas se países mais pobres fazem o mesmo relativamente a Portugal tudo é imoral.

Quando países mais ricos perdem postos de trabalho em benefício dos nossos trabalhadores ninguém está a ser explorado, mas quando Portugal perde postos de trabalho em benefício de países mais pobres entende-se que isso é um sacrilégio e uma exploração vil desses trabalhadores pobres. Trata-se de uma coerente moral ou de uma luta de puros interesses que se socorre de uma capa de pseudomoral, totalmente insensível às necessidades de desenvolvimento dos mais pobres?

Os que lutam contra a globalização incluem os que temem a globalização da economia porque sabem que os países mais pobres irão competir com preços que países como Portugal ou a Europa não conseguem praticar. Os trabalhadores americanos do aço disfarçam-se de anti-globalistas porque querem conter o aço brasileiro, combatendo assim os postos de trabalho dos seus colegas metalúrgicos brasileiros. A solidariedade morre ao virar da esquina. Invocam-se elegantes valores para disfarçar a dura realidade de que o que conta são os interesses de cada um.

Muitos são os que justamente vociferam contra o primário empresário que exige demasiado dos seus operários, mas poucos se preocupam com o facto de existirem mais de 20 milhões de escravos em pleno séc. XXI, designadamente em África. Frequentemente os militantes “sociais” mais ruidosos são os mais insensíveis, exibindo uma preocupação que é estranhamente seletiva.

Julga-se Milosevic mas criminosos de guerra alemães, americanos, russos, chineses, vietnamitas, franceses e outros dormem descansados, alguns em condições principescas. É um azar chamar-se Milosevic em vez de Idi Amin ou Bokassa, porque estes foram contemplados com exílios idílicos.

Olhamos com superioridade para países menos desenvolvidos que o nosso mas não compreendemos que países mais desenvolvidos que Portugal olhem da mesma forma para nós, por exemplo vendo incredulamente a imaturidade com que muitos dos nossos políticos se comportam.

Com um ar de autoridade divina ditamos ao mundo o fim da pena de morte, mas fingimos desconhecer que vários países europeus só a extinguiram num passado recente e que alguns países só a aboliram muitos anos após terem aderido à União Europeia (nesta ou nas suas designações anteriores). Entretanto, norte-americanos defendem direitos humanos e espalham condenações no mundo, enquanto mantêm a pena de morte.

Entre os que mais se arrogam o direito de julgar sumariamente qualquer cidadão encontram-se jornalistas com a narcisista sensação do poder que lançam sobre os outros, julgando, arrasando, destroçando pessoas de carne e osso. Uma notícia escaldante, ainda que destroce alguém ou mesmo que mais tarde se prove infundada, venderá muitos jornais e publicidade televisiva. É uma amoralidade.

Quantos de nós já viram imagens televisivas de indivíduos que estão a ser agredidos, alguns mesmo barbaramente chacinados em frente das câmaras de televisão? Mas quantos se interrogam sobre a imoralidade, a desumanidade e a barbaridade do repórter que, friamente, se mantém a filmar a chacina de um ser humano em lugar de pousar a câmara e tentar ajudar a salvar a vítima? Haverá algum dever deontológico de informar que seja superior ao valor de uma vida que se deve tentar salvar? São estas pessoas que depois nos ensinam moralidade nos telejornais?

Enfim, muitos dos que no mundo atual mais se arrogam em paladinos da moral são os que mais a desfiguram. Mas, lamentavelmente, vivemos num país em que poucos têm a coragem de enfrentar as situações difíceis e os interesses instalados. O que se torna ainda mais amoral.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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