Uma selfie em cada esquina

Já todos vimos a fotografia pelo menos uma vez na vida: por trás do enorme capacete pintado com a bandeira dos Estados Unidos de Manhattan e Silicon Valley, a Terra e a Lua tentam espreitar por cima do ombro do comandante Johnson

“Um pequeno retrato de um homem, uma enorme selfie da humanidade”, disse o comandante David Johnson assim que pisou a superfície de Marte pela primeira vez, faz hoje precisamente 50 anos. Já todos vimos a fotografia pelo menos uma vez na vida: por trás do enorme capacete pintado com a bandeira dos Estados Unidos de Manhattan e Silicon Valley, a Terra e a Lua tentam espreitar por cima do ombro do comandante Johnson, com duvidoso sucesso – estão lá, mas não passam de um par de jarras cheias de pó, escondidas atrás daquela moldura brilhante que domina sempre as atenções numa mesa decorada com napperon e tudo.

Durante uma hora, o comandante Johnson registou os primeiros passos de um ser humano em Marte com um velho smartphone a que os alunos da Escola Secundária Henry M. Gunn, em Palo Alto, voltaram a dar vida de propósito para a viagem – foram eles os vencedores de um concurso nacional que também recuperou um tablet da antiga gigante da tecnologia Apple, fabricado na segunda década do século XXI, e uma velhinha Segway 4x4 usada por caçadores nos últimos anos de existência do Parque Nacional Kruger, na África do Sul.

A primeira viagem tripulada a Marte deveria ter acontecido por volta de 2025, mas o Grande Conflito Bélico pôs todos os programas espaciais do mundo em suspenso. Não fora o empurrão ao avanço tecnológico que só uma guerra mundial consegue dar, e talvez nem em 2075 o comandante Johnson, ou outro comandante qualquer, teria a oportunidade de passear em Marte.

Mas a sorte calhou a Johnson e não a outro comandante qualquer, e era preciso decidir qual seria o primeiro gesto, a primeira frase, a primeira marca de um ser humano em Marte. Foram consultados batalhões de linguistas, poetas, filósofos; pessoas que escrevem discursos para políticos formaram gigantescas filas para audições que entravam pela noite dentro.

Até que alguém se lembrou de que no início do século XX as pessoas costumavam andar pelas ruas a tirar fotografias a si mesmas. Não era fácil compreender esse conceito a tantos anos de distância – é verdade que a fotografia digital tinha levado as pessoas a terem menos cuidado com o que fotografavam, mas certamente haveria coisas mais importantes para mostrarem umas às outras do que a própria tromba.

O comandante David Johnson, homem de gostos sofisticados, ficou logo fascinado com a ideia. O que poderia ser mais interessante do que estar em Marte pela primeira vez na História da humanidade, no meio de montanhas com 10, 15 e 20 quilómetros de altura, e passar o tempo a tirar fotografias ao próprio capacete? Que sentido faria chegar à orla da gigantesca cratera Huygens, com os seus 470 quilómetros de diâmetro, e não tapar mais de metade do horizonte com a tromba de um astronauta?

Os pensamentos do comandante Johnson voavam para fora de Marte enquanto ele ia tirando selfies ao lado da sonda Viking 1, selfies ao lado do robô Opportunity, selfies ao lado daquela coisa que parece mesmo uma cara vista da Terra, os cientistas dizem que é uma montanha mas a mim não me enganam.

E foi precisamente nesse momento que um ser verde com duas antenas e sete olhos em forma de garrafa de 0,5 litros de água, daquelas de plástico, passou por trás do comandante Johnson à modesta velocidade que lhe permitia a única perna, formada sem algo que se assemelhasse a um joelho ou a um calcanhar.

Já todos vimos a fotografia pelo menos uma vez na vida: por trás do enorme capacete pintado com a bandeira dos Estados Unidos de Manhattan e Silicon Valley, o marciano tenta espreitar por cima do ombro do comandante Johnson, com duvidoso sucesso – está lá, mas não passa de uma jarra cheia de pó, escondida atrás daquela moldura brilhante que domina sempre as atenções numa mesa decorada com napperon e tudo.

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