Um tiro nos filmes de Natal

Não quisemos um white christmas, quisemos um dark christmas. Cinco (grandes) filmes para dar tiros nas listas habituais dos filmes de Natal.

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Damos tiros nas listas habituais dos filmes de Natal. Não quisemos um white christmas, quisemos um dark christmas - só se for branco pela cocaína do filme de Abel Ferrara.

O strip tease da humanidade faz-se nas festas de Natal das empresas, mostra o Billy Wilder de O Apartamento. Imaginam Gene Kelly como assassino com traços hitchcockianos? Descubram uma pérola com que se saudou um novo Orson Welles, figura entretanto desaparecida na televisão e que os anos 90 começou a ser redescoberta como uma das obras-primas perdidas do cinema americano. Nicole Kidman dá-nos as Boas Festas: Let’s Fuck!.

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É um filme de aterragens forçadas - o filme de Natal, por exemplo, estatela-se no film noir. Gene Kelly e Deanna Durbin, ele antes dos musicais, ela depois dos papéis de girl next door, e já em final de carreira, são atirados para terrenos sombrios que não eram nada os seus, são machucados mesmo, e isso não lhes valeu sequer reconhecimento algum... No entanto, Durbin diria mais tarde que esse filme que os fãs não lhe perdoaram por ter manchado uma imagem de marca ao fazer uma hostess de cabaret (mas no livro de William Sommerset Maugham que Herman J. Mankiewicz adaptou, a personagem era mesmo uma prostituta russa...) - tinha sido o seu único bom filme: chama-se Christmas Holiday. E a letalidade de luvas de Gene Kelly - é um assassino, submetido aos seus desvios e à mãe -, se nada pode, em termos de iconografia cinéfila, contra o atleta que dançou à chuva para Stanley Donnen e o pirata que rasgou velas de caravelas para Vincent Minnelli (mas contra os musicais nada puderam de facto os papéis dramáticos de Gene Kelly) foi (bem) associado, mais tarde, às performances de actores hitchcockianos, casos de Cary Grant ou Robert Walker, por exemplo. Mas estamos a adiantar-nos. Começa noutro tom Christmas Holiday, de Robert Siodmak, quando um soldado se prepara para ir a casa passar o Natal, em São Franciso. Vai triste, porque a noiva rompeu com o noivado, mas ainda assim vai a casa. Ou ia a casa... Devido ao mau tempo nos céus, o avião é obrigado a aterrar em Nova Orleães. Onde, por via de ligações que mais tarde se percebe serem perigosas, vai parar a um cabaret, onde fica a ouvir Abigail Manette (Durbin) cantar. E fica a ouvir Abigail falar, na verdade, depois de uma Missa do Galo para a qual ela se precipita, assim precipitando todo o filme que parece ser arrastado por um chamamento – apelos, mudanças de tom que desafiam qualquer preocupação de verosimilhança, tudo jurando fidelidade apenas ao encantamento pela fatalidade. Talvez por isso Christmas Holiday seja um objecto ainda não imobilizado, como se calhar já está The Spiral Staircase (1945), um título mais consagrado, consensual, de Siodmak. Fatalidade, o seu encantamento mas, simultaneamente, o tortuoso caminho para a libertação. Christmas Holiday esquece o soldado dos inícios (interpretado por Dean Harens) ou começa com ele porque ele é apenas o primeiro arruinado do filme. Utiliza-o como veículo para chegar aos outros destroços: Deanna Durbin e, através do flashback dela, do “Mea culpa, mea culpa, minha minha máxima culpa”, como na oração da Missa do Galo, Gene Kelly. Há o casamento dos dois, aparecem os segredos dessa família, dá-se um assassinato, a condenação dele e o sentimento de culpa dela - por isso também a “prisão” interior dela. E aí o film noir em Christmas Holiday faz outra vez aterragem de urgência, agora no território do melodrama de libertação. Ficamos a olhar para o céu, num plano inacreditável em que só acredita quem puder.

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Sabemos o que provamos com Billy Wilder: cinismo. Não há Natal que nos dê tréguas. Pelo contrário. Em O Apartamento, o cinismo vem mesmo em doses calculadas e afiadas: por exemplo, as piadas, como vingança imensamente cruel, à custa de Marilyn Monroe, actriz que Wilder dirigira em 1955 (O Pecado Mora ao Lado) e em 1959 (Quanto Mais Quente Melhor) e que a partir daí sempre evocaria da forma desdenhosa e misógina. Em O Apartamento parece que inventa sequências e uma personagem secundária, um “boneco” na verdade, só para ajustar contas. Esse cinismo, como se começa aqui a ver, é trabalhado, pelo argumento de Wilder e de I.A.L Diamond, com a autoridade de quem põe e dispõe do seu próprio património. Veja-se, também, a escolha de Fred MacMurray, que foi um crápula em Pagos a Dobrar (1945) e que é de novo um crápula aqui como chefe empresarial e líder de uma - nova naqueles tempos - “cultura empresarial”; ou a revisitação de motivos, o remake, porque é praticamente disso que se trata, de certas cenas: as garrafas de champanhe como falos (como em O Pecado Mora ao Lado), o “shut up and deal” final como o “nobody’s perfect” que tirava o tapete ao espectador na última cena de Quanto Mais Quente Melhor. Não é muito subtil, mas a grosseria pode ser eficaz a desencadear gargalhadas. Só que Billy Wilder transcende tudo isso em O Apartamento, ensopa o filme com perplexidade perante o que se avizinhava naquele tempo - e que podemos descobrir hoje como sendo do nosso tempo. Como se a arrogância de brincar aos deuses com as misérias do mundo se permitisse dar o flanco. Apesar do exercício da escrita fazer as personagens imensamente virtuosas das suas tibiezas, conscientes de que estão num “palco” a exibir-se, que são material de entertainment, há uma humanidade, mesmo que em perda, a estrebuchar e vibrar. Digamos, então, que Jack Lemmon e Shirley MacLaine, intérpretes das personagens principais deste filme, e que com elas estabeleciam os tons decisivos do que seriam as suas personas cinematográficas, saem vitoriosos do massacre que pode ser jogar para Billy Wilder. Ele é Buddy Boy, aspira a subir de andar no edifício onde trabalha - um anónimo numa sala cheia de anónimos, como no The Crowd (1928), de King Vidor, que Wilder e o director de fotografia Joseph LaShelle explicitamente homenageiam. Buddy abdica da sua privacidade – empresta o apartamento para os “casos” dos superiores –, Buddy abdica das suas horas, de si, do prazer, da sua humanidade. Fica à espera na rua até a satisfação dos outros ser atingida. Um dia consegue de facto subir ao andar de Fred MacMurray como “junior executive model” – a troco de emprestar as chaves do apartamento ao patrão. Fica extático. Mas um homem é isto, alguém lhe pergunta? Ela é Fran Kubelik, rapariga do ascensor, sujeita aos apertos de todos e ao dispor das investidas de MacMurray. Tem sabedoria, “when you’re in love with a married man you shouldn’t wear mascara”, mas o seu masoquismo é maior do que toda essa sabedoria. Bud e Fran encontram-se, digamos que se apaixonam mas não é certo que essa palavra resista naquele mundo e faça sentido no strip tease do humano que Wilder encena quando filma uma festa de Natal numa empresa. Todos conhecemos o que é uma festa de Natal numa empresa - isso pode indispor-nos. Mas o que pode provocar sobressaltos nas gargalhadas hoje - com este filme de 1960 que ganhou cinco Óscares e onde se falava sem se falar em assédio sexual e que alguns na época arrumaram como “a dirty fairy tale” - é ele documentar o aparecimento de um mundo que entretanto se sublinhou como nosso. O Apartamento não derrota todas as possibilidades de Buddy e Franz serem humanos - apesar de tudo.

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O que se ouve no início de Blast of Silence é que o ódio e a solidão começam logo à nascença. Depois da palmada o bebé grita mas a partir de então aprende a suster o grito. Isso chama-se viver: é ficar sozinho, sozinho, sozinho. Frankie Bono é um de nós. É só um pormenor o facto de ser um assassino contratado. Chega a Nova Iorque de comboio na véspera de Natal para fazer o seu trabalho - encontrar o momento certo para disparar sobre um chefe mafioso. É preciso estudar o alvo, conhecê-lo como se conhece um irmão antes de disparar. Pode-se estar à vontade para fazer o que se tem a fazer durante o Natal, as pessoas, os outros, the rest of the suckers, estão distraídas com a onda da boa vontade. Frankie detesta o Natal, mas o Natal permite que ele seja deixado à vontade. Matar compensa, mesmo se todos odeiam aqueles que contrataram para matar - vêem estampada ali a morte. É isto que se ouve em Blast of Silence nas sequências iniciais. O niilismo deste calibre foi escrito por Waldo Salt (argumentista de O Cowboy da Meia Noite, Serpico ou Coming Home que em Blast of Silence é creditado como Mel Davenport porque estava blacklisted). A voz, densíssima e memorável e que nunca deixa o filme (houve e ainda há quem seja derrotado por isso), é de Lionel Stander, outra figura que a Comissão de Actividades Anti-Americanas condenara à invisibilidade. E tudo se passa na cabeça de Frankie Bono, personagem que é interpretada pelo realizador do filme, Allen Baron. Talvez não, talvez seja mais complexo o que se passa: é que essa voz às vezes parece agredir Frankie, outras vezes completa - para o espectador - a biografia de Frankie (por exemplo, sabemos por ela que ele foi adoptado, que lembrar passados Natais aumenta nele o ódio - por causa da saudade - e que a temperatura das mãos, quentes ou frias, é um radar que comunica o grau de ameaça à sua volta). Mas, isso é que é transbordante, às tantas essa voz está disseminada por todo o filme, que se metamorfoseia em outras vozes, que assim se vai rasgando com gritos. Se Frankie aprendeu a suster o grito, Blast of Silence solta-o no lugar da personagem – numa sequência em que ele vai a um clube nocturno, o canto que se exibe, o canto e os tambores, são uma passagem de testemunho dessa exteriorização da agonia. E já que falamos de um filme que se dilacera por todos os lados, podemos ouvir nesta Nova Iorque de preto e branco plúmbeo a cidade de Shadows (1959), de John Cassavetes (fotografia de Erich Kollmar, operador de câmara em Blast of Silence), a deambulação de Jeanne Moreau no Fim de semana no ascensor (1959) de Louis Malle, tudo “músicas” do mesmo tempo - sobre O Acossado, de Jean-Luc Godard, Allen Baron diz que só viu esse filme mais tarde, mas para ele fazem sentido as comparações porque acha que o que Godard fez com Paris fez ele com Nova Iorque. Mas o que mais arrebata é ouvir em Frankie, na sua solidão, misantropia e misoginia, os latidos de dor do Travis Bickle de Taxi Driver (1976), personagem que parece antecipar a sua entrada no cinema em duas ou três sequências deste filme – Blast of Silence estreou quando Scorsese era aluno da NYU e Marty já disse que de facto o considera um dos mais marcantes filmes sobre a cidade de Nova Iorque. E Allen Baron? Era autor de cartoons e actor ocasional. Chegou a cruzar-se com Eroll Flynn em Cuba, na rodagem de Cuba Rebel Girls, uma ficção-documentário em que Flynn, nos seus dias finais, se dava a ver como simpatizante de Fidel Castro na guerrilha contra o regime de Fulgencio Batista. O material que sobrou dessa rodagem seria aproveitado por Baron para Blast of Silence. Ele depois quis Peter Falk, seu amigo, para intérprete principal, mas Falk partia nessa altura para a notoriedade, não podia dar-se ao luxo de olhar para trás e distrair-se do objectivo. Baron resolveu então testar a sua presença no ecrã. E acabaria por incluir esses testes de casting, que lhe serviram também para obter financiamento, na acção do filme que foi rodado em lugares da sua infância em que fantasiava com cadáveres semeados pela Mafia. Blast of Silence estreou como double bill, chegou a ser premiado em Locarno, mas depois desapareceria. Allen Baron, um par de longas-metragens depois, desapareceria também na TV, em séries como Os Anjos de Charlie ou O Barco do Amor. Em 1990, surpreendeu-se quando o Festival de Munique deu sinais de que havia uma vaga de descoberta do seu filme. Em Requiem for a Killer: The Making of Blast of Silence (2007), documentário sobre os lugares e o tempo desta obra espantosa em que vai buscar o realizador para o filmar nas mesmas esquinas e ruas da cidade, ele ri-se quando se recorda de uma crítica. Interrogava assim: “Este é o novo Orson Welles?”

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Não é seguro que alguém se lembre que o último filme de Stanley Kubrick se passa nas vésperas de Natal, quando os casais se apressam nas compras para os filhos. É isso o que acontece ao casal Nicole Kidman e Tom Cruise: acabam o filme nas prendas - na verdade, o filme acaba com uma sugestão dela, de uma natureza bem diferente, porque Nicole é aquela que faz “a bad bad thing” em De Olhos Bem Fechados, como canta Chris Isaak. Em cada sequência de interiores há de facto iluminação e árvores de Natal. Mas o par Kidman-Cruise, na altura casal, tornou-se o monolito do filme, presença que, por crueldade e ironia de Kubrick, ocupou todos os espaços e dimensões - as duas estrelas aceitaram submeter-se, durante um ano de rodagem em Londres, a essa proposta do realizador, talvez por ego, certamente por inteligência e sentido de risco. Também por isso o Natal, embora omnipresente ou se calhar por causa dessa omnipresença, vai sendo progressivamente, friamente, desapossado de “espírito” encantatório. Passa a ser iluminação fantasmagórica da carne humana. A primeira coisa que se vê em De Olhos Bem Fechados, filme inspirado por uma novela de Arthur Schnitzler, é de facto a nudez, de Nicole. De outra maneira Tom também se expõe, ele e o seu heroísmo de palmo e meio a correr para salvações in extremis. É tudo fantasma, e é o filme menos erótico, carnal ou sexual que se poderia esperar – corrige-se: só podia esperar-se um filme assim de Stanley Kubrick, só podia esperar-se filme assim com este par. Ela é aquele a quem acontece tudo na imaginação. Ele é aquele a quem tudo falha na realidade. Esse confronto entre os sonhos dela e a insinuação de impotência dele é uma das mais sugestivas fantasias com que o filme joga. Nem o sonho é isento de realidade, nem a realidade é isenta de sonho, diz-se às tantas. A Nova Iorque de De Olhos Bem Fechados, construída em Londres em estúdio, é a primeira manifestação disso: uma síntese, fabricada, imaginada, das Nova Iorque de cinema (e dos filmes de Natal) ocupada por uma melancolia terminal muito Viena fin de siècle; tudo isto parece mais “real” do que o que se vê nas cenas de ligação, vislumbres da verdadeira Nova Iorque – captados por uma segunda equipa enviada por Kubrick -, supostamente para normalizar o que tinha sido fabricado em estúdio. Mas não é isso que acontece, a normalização, é o fantasma que triunfa. Nicole e Tom parecem várias vezes - questão de iluminação – saídos de outros filmes de Kubrick, de 2001 Odisseia no Espaço ou de The Shining, como se os pudéssemos encontrar, por exemplo, entre as figuras que posam para a fotografia do baile do hotel em que Jack Nicholson enlouqueceu. É o fantasma que triunfa e acena no final. Eis as Boas-Festas de Nicole Kidman, baby doing a bad bad thing: “Let’s fuck”

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“Isto” vem de quem nasceu no Bronx, em 1951, num local que baptizou afectuosamente como “Ranging Bull Ville” - o prédio ficava em frente ao edifício onde habitava Jake La Motta, o boxeur biografado em Raging Bull, de Martin Scorsese. Isto vem de alguém que se lembra que numa certa altura na cidade de Nova Iorque se sabia onde havia drogas às três da tarde e se formavam filas de espera à volta do quarteirão. R-Xmas- O Nosso Natal vem do cineasta Abel Ferrara, o filho “de um empregado de uma organização” - eufemismo que ele um dia utilizou ao falar das suas origens. É o filme mais bonito, mais delicado do realizador de Polícia sem Lei (1992). Tremendamente nostálgico, também: é uma ideia de Nova Iorque que desaparece. Filme de época: em 1993, ano em que decorre a acção, viviam-se os últimos dias de David Dinkins como mayor da cidade (o primeiro mayor negro de Nova Iorque), antes de Rudolph Giuliani ter transformado Manhattan numa Disneylândia que deixou os nova-iorquinos mais puros e duros em ressaca. A droga começava a aparecer de limousine. Ele e ela emergem, então, deslizando sobre um cenário difuso (por isso Ferrara procura superfícies e reflexos espelhados, mostra lívidas figuras em trânsito, à espera, sonâmbulos em busca de algo que ainda não podem saber o que é mas a que chamaremos “redenção”.) Velam pela economia familiar. São dealers. Lillo Brancato é doce e grave, pesa-lhe a responsabilidade simbólica de ser o chefe de família. Drea de Matteo é aguerrida (Ferrara foi buscar Lillo e Drea à série Os Sopranos e comove-se e comove-nos com eles). Depois da récita na escola da filha, do passeio em carroça em Central Park, da visita à árvore de Natal do Rockfeller Center e das compras, estes filhos de emigrantes porto-riquenhos e dominicanos que procuram o sonho americano vestem os blusões de couro, cortam a droga na mesa de vidro do salão e inundam Nova Iorque com o pó. Não usam drogas, não gostam de drogas sequer: cuidam da família. Deixam a angústia moral à porta do aconchego familiar - como se isso fosse possível, deixar a moral à porta. É um filme povoado de crianças, como se a inocência fosse possível. Como se o branco pudesse ficar imaculado, sem sangue (e como se fosse possível Abel Ferrara recomeçar, como assumiu o próprio, depois do sentimento terminal que corroeu The Black Out, em 1997, e New Rose Hotel, em 1998). A vertigem faz-se sentir como se não houvesse leis da gravidade em O Nosso Natal. Ice-T cai do céu como num filme de Frank Capra, anjo comovente, anjo corrupto.

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