2017, o ano da mulher em série(s)

O clima social e político fabricou novas armas e as mulheres ganharam mais direitos na ficção televisiva num ano em que a posição social da mulher foi, precisamente, um dos grandes debates culturais. E toda esta coragem fará a diferença?

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Num sábado do final de Setembro, a ciclista Juli Briskman levantou o dedo do meio quando se viu rodeada e ultrapassada na estrada pela caravana do Presidente Donald Trump, na Virginia. “Ninguém resumiu melhor o estado de espírito do país”, comentou o apresentador Stephen Colbert num ano em que a posição social da mulher foi um dos seus grandes debates culturais. Sempre houve séries “de mulheres” e tantas, tantas novelas. Mas este ano, elas foram um gesto diferente.

Briskman, de 50 anos, foi despedida depois de ter avisado os patrões que era ela na fotografia, uma de tantas imagens de mulheres de um 2017 que as pôs de prémios nas mãos, de toucas opressivas na cabeça, de óculos escuros à saída de tribunais desconcertantes ou que as mostrou, desafiantes, na capa da Time. “As mulheres mostraram uma coragem tremenda em 2017 – fará diferença?”, perguntava-se há dias a escritora Sarah Seltzer na Rolling Stone. Foi um ano em que, tal como as livrarias voltaram a vender mais distopias totalitárias, a televisão, a chamada "idiot box", serviu de caixa de ressonância do mundo lá fora – e em particular do mundo visto da perspectiva da vida interior das mulheres. O clima social e político fabricou novas armas, como evidenciaram em Junho as mulheres da organização dedicada à saúde sexual e reprodutiva Planned Parenthood, que se vestiram como as escravas reprodutivas de A História de uma Serva (o título português para The Handmaid’s Tale) para protestar frente ao Capitólio dos EUA.

Não o fizeram só pela força do romance de 1985 de Margaret Atwood, que fez “uma previsão absolutamente possível”, como elogia a escritora e argumentista portuguesa Patrícia Müller, mas porque a série que dele nasceu em 2017, The Handmaid’s Tale, é um fenómeno que promoveu a sua imagem de mulheres de vermelho e touca constritora a símbolo de protesto. Na TV, elas já foram, ou são ainda, presidentes, secretárias de Estado, primeiras-ministras, advogadas, médicas, agentes da CIA, amigas de 20, 30 ou 40 anos, reclusas, gestoras de crise, reformadas ou donas de casa desesperadas. E gémeas de novela, heroínas e vilãs de banda-desenhada, todas muito brancas, ultimamente e finalmente um pouco mais negras, asiáticas ou latinas.

“Porque as mulheres são interessantes e importantes na vida real. Elas não são um pensamento a posteriori da natureza, elas não são actores secundários no destino humano, e todas as sociedades sempre o souberam”, postulou Margaret Atwood, uma das autoras de 2017 depois de quase 50 anos de carreira, num texto sobre The Handmaid’s Tale publicado em Março no New York Times.

A colheita de 2017 foi feita das estreias de The Handmaid’s Tale, Alias Grace (ambas a partir de obras de Atwood), Big Little Lies, Top of the Lake: China Girl, The Marvelous Mrs. Maisel, Feud: Bette and Joan, Glow, One Day at a Time ou, em Portugal, de Madre Paula. Mas também da segunda temporada de The Crown e da comédia Insecure, do final de Girls e de Mindy Project, de Better Things e das filmagens de Três Mulheres, de Fernando Vendrell, sobre Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis. Big Little Lies, por exemplo, e com todos os watts da luz das estrelas de Hollywood Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Laura Dern e Shailene Woodley, revelou “o traço definidor da TV deste ano”, escreve Zoe Williams no Guardian. “Uma aceitação, finalmente, de mulheres não só como personagens de direito próprio – com os seus próprios pensamentos, conversas, arcos [narrativos] e carros – mas como personagens que podem carregar uma série.”

Contaram histórias de uma criada acusada de assassínio no século XIX, de mulheres privilegiadas e belas e da violência doméstica que se esconde nas suas casas e casais de revista. São o regresso da única realizadora a ter recebido a Palma de Ouro em Cannes, Jane Campion, à televisão. São contos sobre mulheres na luta livre, de mães solteiras, sobre a rainha de Inglaterra, das dores de crescimento de millennials, sobre duas divas da era de ouro de Hollywood ou sobre uma freira que era amante do rei D. João V. A história da criada Grace foi produzida e adaptada pela actriz Sarah Polley e a distopia de género e religião de Atwood foi realizada por Reed Morano, que se tornaria com ela na primeira mulher em 22 anos a receber o Emmy de melhor realização (numa categoria em que também competiam Lesli Linka Glatter, de Segurança Nacional, ou Kate Dennis, também por The Handmaid’s Tale).

No caso de Big Little Lies, e “se a TV nunca teve falta de personagens femininas complexas, figuras como [Reese] Witherspoon agora estão a envolver-se atrás das câmaras” como produtoras executivas, assinala Alison Herman na sua defesa, no site The Ringer, de como a série da HBO é, também por isso, a mais influente do ano. Em The Deuce, série sobre a indústria do sexo nos anos 1970, os criadores David Simon e George Pelecanos construíram uma estrutura em que a protagonista Maggie Gyllenhall é também produtora e a escritora Megan Abbot é uma das argumentistas de maior visibilidade. Na comédia Insecure, e tal como Lena Dunham em Girls, Issa Rae acumula vários papéis: criou-a (com Larry Gilmore), produz, escreve e protagoniza a sua história da experiência contemporânea afroamericana.

"Big Little Lies" tem todos os watts da luz das estrelas de Hollywood: Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Laura Dern e Shailene Woodley.
"Big Little Lies" revelou “o traço definidor da TV deste ano”, escreve Zoe Williams no Guardian
"Alias Grace", uma das ficções que partem de livros de Margaret Atwood: A história da criada Grace foi produzida e adaptada pela actriz Sarah Polley
Na comédia "Insecure" Issa Rae acumula vários papéis: criou-a (com Larry Gilmore), produz, escreve e protagoniza a sua história da experiência contemporânea afroamericana
"Insecure", da HBO
"The Handmaid’s Tale", também de Margaret Atwood, é um fenómeno que promoveu a sua imagem de mulheres de vermelho e touca constritora a símbolo de protesto.
Margaret Atwood nas filmagens de "The Handmaid’s Tale",
"Feud: Bette and Joan": centra-se na batalha de bastidores entre Bette Davis (Susan Sarandon) e Joan Crawford (Jessica Lange) durante a produção do filme "What Ever Happened to Baby Jane?" de 1962
"Veep" ganhou o título de Melhor Comédia e Julia Louis-Dreyfus recebeu o seu oitavo Emmy.
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"Big Little Lies" tem todos os watts da luz das estrelas de Hollywood: Nicole Kidman, Reese Witherspoon, Laura Dern e Shailene Woodley.

“Algo mais vital”

“A televisão está a avançar de uma forma verdadeiramente positiva para as mulheres, e parece que o cinema ainda se move na direcção oposta”, diz ao P2 Melissa Silverstein, fundadora do projecto Women and Hollywood. “Vemos mais personagens que reflectem toda a diversidade das mulheres”, acredita, “também porque há muito mais conteúdo na TV”. Muitas destas séries são de canais por subscrição ou de serviços de streaming, os primeiros dotados de orçamentos e a orientações estratégicas para fazer apostas diferenciadoras, os segundos actualmente a investir muito para se afirmarem num mercado em profunda mutação.

Mas há também séries dos canais generalistas americanos que merecem destaque - Silverstein menciona This is Us, da NBC, quando falamos sobre dramas que têm reposicionado também os estereótipos da masculinidade, e ainda Anatomia de Grey, a duradoura peça do império da criadora Shonda Rhimes, que considera que “lida com mulheres, ambição e sucesso de uma forma que outras séries não fazem”. Em Portugal, ambas estão na TV por subscrição, na Fox Life; na Fox Comedy mora The Mindy Project e Segurança Nacional passa na Fox e na RTP. Outras não tiveram estreia em Portugal, como Better Things, Top of the Lake, Feud ou Queen Sugar, de Ava DuVernay, que contratou propositadamente apenas realizadoras em busca de novas oportunidades. Outras estão no streaming do Netflix (Alias Grace, Glow, One day at a time, The Crown) ou Amazon (Mrs. Maisel). Madre Paula é da RTP1, que há dois anos tenta construir os alicerces de uma indústria de séries em alternativa à já bem sucedida produção de novelas, e está agora online no RTP Play. Já Big Little Lies, Girls ou Veep são da HBO e vêm para Portugal para o canal premium TVSéries, para depois viverem no serviço por subscrição Nos Play, onde se estreou em exclusivo há dias The Handmaid’s Tale.

Em Abril, The Handmaid’s Tale “chegou com uma ressonância perturbadora à cultura americana”, defende o crítico de TV Hank Stuever no Washington Post, e “noutro espaço mental seria apenas uma série de televisão excelente. Contudo, em 2017, era algo mais vital.” Tornou-se histórica meses depois, ao ser coroada como a melhor série dramática do ano nos Emmys, os mais observados prémios de televisão do mundo, por ser a primeira série de um serviço de streaming, o Hulu, a vencer o cobiçado galardão. Não esteve sozinha, com Big Little Lies a receber o prémio de minisérie e perante mais uma vitória da série sobre uma presidente incompetente e egocêntrica, Veep, a acumular o título de melhor comédia e a dar a Julia Louis-Dreyfus o seu oitavo Emmy.

“A comédia construída em torno de mulheres tem sido particularmente vibrante, incluindo Broad City, Lady Dynamite e Insecure”, notava em 2016 o crítico do New York Times James Poniewozik, citando Veep mas também Transparent ou Master of None e estendendo a diversidade à raça nas comédias de 25 minutos. Mas se “há uma tradição 100% feminina na comédia (de Sarilhos com Elas a Sexo e a Cidade e Girls), no drama nem por isso”, assinala Zoe Williams. Por isso mesmo, programas como The Handmaid’s Tale ou Big Little Lies parecem pedradas num charco onde, além disso, “a televisão tem a oportunidade de ser mais contemporânea em termos de zeitgeist, do que se está a passar. Pode-se reagir com bastante velocidade, ao contrário do cinema”, diz Silverstein ao telefone de Nova Iorque. Big Little Lies, que uma das protagonistas de Três Mulheres, Soraia Chaves, descreve como “absolutamente incrível”, “é uma série do momento”, remata Melissa Silverstein.

“Neste momento a TV tem muito mais poder que o cinema. É mais barata, mais acessível e há de tudo”, defende Patrícia Müller, autora de Madre Paula, o livro, de Madre Paula, a série (com Eduarda Laia) e de novelas da SIC e TVI como Rosa Fogo, Mar de Paixão ou Poderosas. Na tradição televisiva portuguesa, a novela é a força narrativa dos últimos anos. E é um território feminino. Hoje, refere Müller, dada a ampla oferta actual, há mesmo “uma ‘telenovelização’ de um certo tipo de séries contemporâneas. Há um repescar do melodrama, que é algo completamente feminino”. Ainda assim, a diferença marcada pelas séries é a da abordagem e nuance - “Se enquanto uma protagonista minha de uma novela jamais poderia ter uma atitude mais agressiva, ou mais ousada, numa série isso já é permitido. A Madre Paula é amante de um rei. Uma protagonista de uma novela não é amante de um homem casado”. Aproximar-se-ia mais da categoria da vilã. “A novela ainda obedece a estereótipos muitíssimo fortes.”

Soraia Chaves nas filmagens de "Três Mulheres", de Fernando Vendrell, sobre Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis (RTP1, 2018)
"Madre Paula" (RTP1), de Patrícia Müller, com Eduarda Laia e Paulo Pires
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Soraia Chaves nas filmagens de "Três Mulheres", de Fernando Vendrell, sobre Natália Correia, Vera Lagoa e Snu Abecassis (RTP1, 2018)

Amor e poder

Müller lembra que o amor e o poder são os pólos determinantes nesta ficção, sejam novelas ou séries. Ora há dois anos, o jornal francês L’Express perguntava-se se as séries seriam “o el dorado para as mulheres” e o Le Figaro clamava “mulheres ao poder”; a série dinamarquesa Borgen, que passou na RTP2, em França era Borgen, une femme au pouvoir. Há cinco anos, a revista Les Inrockuptibles entusiasmava-se, a propósito de Girls, The Good Wife e Segurança Nacional: “vivam as mulheres!”. Mas apesar de uns bons sinais e de um bom ano, há ainda um caminho a percorrer.

Aquela noite de Emmys em Setembro, com afirmações de igualdade que pareciam um clímax dos discursos de Meryl Streep, Patricia Arquette ou Cate Blanchett em cerimónias de Óscares passados - que exigiam paridade salarial e mais histórias de mulheres de mais idades e feitios por parte -, teve um revés. “A noite foi uma demonstração notável de diversidade tanto cosmética quanto factual”, atentou o crítico Matt Zoller Seitz no Vulture. Tanto Handmaid’s Tale quanto Big Little Lies foram geridas por homens (Bruce Miller, e Jean-Marc Vallée com David E. Kelley, respectivamente) e o star power de Kidman e companhia quase engoliu outros vencedores que falavam de raça, por exemplo. Nos bastidores, os problemas continuavam.

Foi então, como o filme, apenas um dia em Setembro, engolido meras duas semanas depois pelo escândalo Weinstein e seu tsunami de revelações sobre a pressão e violência sexual exercida sobre as profissionais de Hollywood, primeiro, e do mundo e sobre alguns homens, depois. Dias depois de o tema assédio se ter tornado num caso sério de 2017, Krista Vernoff, a showrunner de Anatomia de Grey, dizia mesmo na revista Hollywood Reporter: “Até mudarmos as nossas histórias e a forma como construímos as nossas salas de argumentistas, as nossas equipas de realizadores, temos um problema muito maior do que ‘aquele patrão pode convidar aquela mulher para sair?’.” Refere-se à histórica disparidade atrás da câmaras entre homens e mulheres criadores, realizadores, gestores, de séries ou filmes.

Os números contrariam qualquer euforia: na temporada de Setembro de 2016 a Maio de 2017 (abarcando boa parte das novas séries mencionadas neste texto) 68% das séries americanas tinham elencos com mais homens do que mulheres; já 21% desses programas tinham elencos com mais personagens femininas do que masculinas. Ainda assim, houve um aumento em relação à temporada anterior, com 42% das personagens de relevo a serem de mulheres em todas as plataformas (canais abertos, por subscrição e streaming), mais 38% do que em 2015/16. E se há mais diversidade nos elencos, continua a haver poucas latinas, muitos estereótipos (elas são mais novas, menos vistas a trabalhar fora de casa e é dada mais importância ao seu estado civil do que os homens).

Nos bastidores, segundo a edição mais recente do estudo Boxed in do Center for the Study of Women in Television & Film da Universidade de San Diego, a paridade é uma galáxia distante. Ainda com uma ligeira melhoria de 2% quanto à temporada televisiva anterior, há apenas 28% de mulheres a criar, realizar, escrever, produzir ou a montar séries - “o emprego de mulheres em posições-chave de bastidores parou, sem qualquer progresso significativo na última década”, escreve a directora do centro e autora do estudo, Martha F. Lauzen. Existe também uma relação estatística, comprovada em estudos sobre TV, cinema americano, europeu ou português, entre a presença de mulheres nesses lugares de decisão e o aumento da paridade da sua representação no ecrã e para além dele.

Essa ausência, e o facto de alguns dos agressores sexuais agora revelados estarem em posições de decisão como a produção ou mesmo a administração de conteúdos como na Amazon (Roy Price, acusado de assédio e afastado do cargo), mostra como “estas decisões são importantes; moldam o tipo de mensagens que os públicos recebem e a que tipo de personagens são expostos”, escreveu Rebecca Traister na revista New York em Outubro. Price, por exemplo, terá dito “não” às propostas de fazer The Handmaid’s Tale ou Big Little Lies.

Questionadas sobre se havia uma urgência, uma necessidade premente de ver as histórias que 2017 deu à TV, as entrevistadas do P2 matutaram. Algumas anuíram, depois, escrutinando as suas posições de criadoras, actrizes, espectadoras. Referiram-se mais ao tempo, às circunstâncias da recepção destas séries, à forma como dizem algo sobre o o agora. Somos nós, público, que damos sentido e significado às séries, gerando reacções, análises, influenciando novas histórias.

“As coisas estão a mudar, e se calhar também a mudar na ficção. Foi um ano muito profícuo para estas mulheres”, reflecte Patrícia Müller. Soraia Chaves, cabelo preso como o da Natália Correia que será em Três Mulheres, a estrear em 2018 na RTP1, escolhe as palavras. “Não sei se falaria em urgência, mas faz sentido que as histórias não tenham a mulher em pano de fundo”, diz. “Vivemos num mundo conservador, é importante ganhar esse espaço e destaque” na ficção, em questões que podem ser “dramaturgicamente muito íntimas”.

Para Melissa Silverstein, além do entretenimento, “muita gente procura séries e filmes que os reflictam, que os deixe ser parte de uma narrativa. Por isso vemos tantas mais séries inclusivas”. Depois de uma década a gerir o site de informação Women and Hollywood, acredita que o cinema e a televisão nos permitem sair da nossa zona de conforto - paradoxalmente, na nossa sala. Descreve os criativos na origem destes programas como “os nossos desafiadores”.

Este artigo encontra-se publicado no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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