No Natal, como nos outros dias, à mesa pensa-se no ambiente

Embrulham as prendas em catálogos velhos, para evitar o desperdício, e na mesa de Natal há "tofulhau" em vez de bacalhau. A família e os amigos não faltam. E, para que o Natal seja feliz, “nenhum animal tem de sofrer”

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Nelson Garrido

O apartamento de Francisca Pimenta e Jorge Saraiva é uma casa aberta. Abre-se para amigos, família, alunos de ioga, terapias holísticas e praticantes de meditação ou de “outras artes milenares para a abertura da consciência” que o casal do Porto ensina ali, no meio da sua sala de estar, de costas voltadas para a cozinha onde, daqui a pouco, começam a preparar a consoada. “É aqui que vivemos e é onde também damos as nossas aulas”, introduz Jorge, 37 anos, em jeito de boas vindas. “E é aqui que procuramos trazer um bocadinho de equilíbrio, sair da azáfama e do stress que continua a correr lá fora”, mas que, juntamente com os sapatos de rua, não deixam entrar.

O mesmo nome que deram à filha, agora com dois anos e meio, deram à casa. “Chama-se Casa da Alma, mas não é só dela. É de todas as almas”, diz. E na noite de Natal não é diferente. Este ano, além do pai do professor de ioga — que ainda é jurista em part-time — e da mulher, sentam-se também à mesa um casal de amigos brasileiros e a filha, sem família em Portugal.

Ao contrário do que aconteceu em 2016, o pai de Jorge não vai tocar à campainha com uma posta de bacalhau num tupperware. Isto porque a mesa da consoada, como a de todos os outros jantares naquela casa, vai estar totalmente recheada de pratos vegetarianos. “Da nossa família, o meu pai é o que aceita melhor, vem cá sem problema nenhum. Este ano optaram, por iniciativa própria, por comer tofu também”, diz Jorge, a sorrir. “O meu pai e a mulher são muito receptivos e curiosos, estão sempre a pedir dicas, só não mudam fruto dos hábitos.”

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Jorge Saraiva e Francisca Pimenta na sua casa, a Casa da Alma, no Porto Nelson Garrido

No jantar de Natal vão fazer tofu com broa — "tofulhau"— e os amigos vão recriar um assado típico brasileiro, versão vegan, e outro português, o bacalhau à Brás, mas com alho francês. Os doces, que também vão abundar, são os mesmos que se encontram na maior parte das mesas, mas sem açúcar, por causa das crianças, e sem leite ou ovos. E as prendas, embrulhadas em catálogos velhos, foram pensadas "cuidadosamente" e "com intenção".

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Alguns substitutos vegetais à proteína animal (grão de bico, lentilhas, feijões, ervilhas, favas) Nelson Garrido

No início, levar a comida para casa dos pais e dos avós “parecia desconfortável”, mas com o tempo perceberam “que é ainda mais desconfortável e estranho para os outros”, relembra Francisca, 38 anos e vegetariana há cerca de dez. Começou por deixar a carne, devido a problemas de saúde, depois o peixe. Jorge levou o mesmo caminho, que iniciou “por razões éticas e ambientais”. “Fiz o clique quando aprendi que há substitutos [da proteína animal] muito mais saudáveis e que não acarretam nenhum tipo de violência nem sofrimento animal”, conta. “Continuo a vivenciar o Natal da mesma maneira, o que é importante não é o bacalhau. Nós associamos a diferentes coisas porque somos seres muito sensoriais”, continua. “Aquilo que eu guardo do Natal é a família reunida à volta de uma mesa, naturalmente. Mas a pedra essencial, para mim, não era, nem é, de todo, o bacalhau.”

“Isto é aquilo em que nós acreditamos e a nossa consciência é o que nos faz permanecer”, confere a professora de ioga que, durante seis anos, foi advogada. Anos depois, ainda notam “o desconforto do desconhecido”, mas “as pessoas começam a aprender a limar a língua”, nota Jorge. “Mesmo assim, ainda no outro dia a minha mãe perguntou se eu não queria um bocadinho de bacalhau, só para provar”, diz, com um encolher de ombros.

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Alexandra Mendes gere, em conjunto com o marido, o blog Amor e Hortelã onde divulgam receitas veganas Nelson Garrido

Amor, hortelã e proteína vegetal

Quando decidiu tirar o curso de cozinha, Alexandra Mendes, 41 anos, tremeu ao ouvir uma frase da mãe. “Se fosse no tempo da tua avó tinhas de saber matar uma galinha”, dissera-lhe. Na altura ainda não era vegetariana, mas já evitava comer carne. Desde há um ano que a agora chef e responsável pelo blogue Amor e Hortelã, onde divulga e promove receitas veganas, não consome produtos de origem animal. O marido, Jorge Ribeiro, 38 anos, teve alguma influência na decisão.

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Alexandra Mendes e Jorge Ribeiro vão preparar uma ceia de Natal vegana para toda a família Nelson Garrido

“Quando fiz 30 anos achei que tinha de dar um contributo à sociedade. Escolhi a causa animal, que via na altura apenas como a causa dos animais e dos gatos abandonados”, ironiza Jorge. “Mas que sentido fazia estar a ajudar uns e contribuir para o sofrimento de outros?” Passados nove anos di-lo com a mesma convicção: rapidamente passou de um “omnívoro que não contribuía quase nada para a sociedade” para “estar muito envolvido na causa animal e ser desde logo vegano”, afirma o engenheiro electrotécnico que participou na formação do PAN - Partido Pessoas-Animais-Natureza. Depois do "navio partir para alto mar" criou, em 2012, com Fernanda Roxo, a Vida Animal, associação sem fins lucrativos que lhe ocupa os tempos livres.

Este ano, o Natal é em casa dos dois e, como é costume, a ceia vai partir das receitas veganas originais de Alexandra. “É para toda a gente, eles já sabem para o que vêm”, diz, decidida. “Até quando temos almoços com a família da Alexandra eles fazem tudo vegetariano, para toda a gente”, conta Jorge. “Para não fazerem comidas diferentes e porque também não faz mal nenhum comer vegetariano uma vez por mês”, ri-se, acrescentando que a sua mãe deve comer bacalhau no dia seguinte, “para cumprir a tradição”. Na noite de 24, ou seitan ou tofu. A chef, que trocou a área da modelação pela cozinha, inclina-se mais para o último, que deve preparar com molho de romã e acompanhar com arroz integral, uvas passas e penca salteada. Há também a hipótese de o servir com broa, grelos e batata espalmada. “Ainda não decidi”, revela.

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O tofu é o que resulta melhor numa ceia de Natal, diz a chef Alexandra Mendes Nelson Garrido

Na verdade, não está muito preocupada. A preparação do jantar de Natal exige quase as mesmas compras de sempre. “As pencas vêm de casa da minha mãe”, explica Alexandra, ao abrir a porta à explosão de verdes que guarda no frigorífico. “Todos os sábados de manhã costumo ir ao mercadinho de produtos biológicos, locais e da época, no Parque da Cidade, onde compro a maior parte dos vegetais. E para o Natal assim será”, prossegue, enquanto mergulha a colher no leite-creme com gengibre — que de leite só tem o nome e rouba o tom amarelado, não a ovos, mas à farinha de milho.

Prendas a pensar no planeta, para crianças e animais

Não é só na mesa que o casal procura “ir à raiz”. “Não temos nenhuma paciência para ir a centros comerciais, muito menos nesta época”, comenta Jorge. “Quando compramos coisas, normalmente só para as crianças, preferimos artigos artesanais e locais.” E não deixam os animais de fora: “eles enquadram-se na categoria das crianças”, riem-se. Já entre os dois não trocam embrulhos. Decidem antes, e em conjunto, “partilhar experiências”, como ir a espectáculos ou jantar fora.

Também as poucas prendas que Francisca Pimenta e Jorge Saraiva vão dar, à filha ou em nome dela, estão guardadas num armário e embrulhadas em catálogos de promoções, para reduzir os resíduos. Durante todo o ano, e este fim-de-semana de Dezembro não foge à regra, procuraram brinquedos de materiais reciclados, de madeira ou biodegradáveis. Não compram muitos, até porque Alma já decidiu quais são os seus favoritos: sacos de papel que enche e passeia pela casa. Os avós também receberam o recado: “Não é preciso muita coisa porque ela não brinca e é um desperdício.”

“Dentro do nosso metro quadrado, tentamos fazer o que podemos para deixar a menor pegada ambiental”, asseguram. A criança de dois anos e meio gosta de música e por isso Francisca comprou-lhe instrumentos musicais, para oferecer juntamente com os avós que, na troca, vão receber da neta pinturas feitas durante o ano e emolduradas pela mãe. É esta "consciência sustentável" que querem transmitir, inclusive durante o Natal. “A cabeça dela ainda está muito leve. A nossa tarefa é tirar, a deles é não colocar”, sintetiza Francisca. “Não queremos impor nada porque, naturalmente, ela vai ter a sua liberdade para pensar pela própria cabeça", completa Jorge. "Mas da mesma forma que os nossos pais nos educaram com os valores que sentiram que eram os correctos, nós fazemos o mesmo.”

“Procuramos, nesta altura e em todas as outras, sensibilizá-la para como se relacionar com os animais, as pessoas, os recursos e o planeta. Porque achamos que isto é que acaba por transformar o mundo”, conclui, calmo, com um olhar de esguelha para Francisca.

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