O homem dos descobrimentos sónicos

Incansável a pôr trabalho cá fora desde o regresso em 2015, Sp Deville confirma-se, se dúvidas existissem, como um criador muito particular.

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Black Gipsy, título que, além do significado literal, estimula uma outra leitura: a escuridão, o negrume das crónicas cantadas por um viajante, errante e solitário, Sp Deville

Quando, em meados de Dezembro 2015, o videoclip de Olha Para Trás estourou na net, ninguém estava preparado para um regresso assim: Sp Deville, figura praticamente esquecida do rap português, ressurgia cheio de potência e charme por entre a escuridão, os néones e o fumo. Desde esse primeiro single, inserido no álbum Sou Quem Sou, Deville, que tem raízes angolanas, tem vindo a reconstruir o seu percurso, sempre entre Inglaterra (reside actualmente em Londres) e Portugal, país do qual se lhe sente uma enorme mágoa (mais pacificada agora, como se sente em Pensar em Mim) pelo não reconhecimento pelo seu passado nos SP & Wilson e nos Makongo, algo perfeitamente audível nesse disco de 2015.

O oculto e o místico, mas também a líbido e a carnalidade, insuflavam as palavras do músico no come back, ao qual se seguiu o EP Instru-Mental (2016) e, já este ano, o EP It’s Deville Bitches (2017), todos com o selo da FamilliBizno, editora que integra uma série de nomes do rap português mais underground “sediado” em Odivelas. Até que chegamos aqui, a Black Gipsy, título que, além do significado literal, estimula, desde logo, uma outra leitura: a escuridão, o negrume das crónicas cantadas por um viajante, errante e solitário como todos os são, homem numa epopeia carregada de fantasmas e demónios (o álbum anterior já andava intensamente em torno da ideia de expiação). Ideia que não se resume à formulação semântica, antes se concretizando logo na primeira canção, de elucidativo título Caravela: aquilo que parece um sopro reminiscente da música tradicional indiana (será um shehnai? Ou um pungi?) desde logo nos situa num tempo-espaço medieval do qual saímos rumo a “outro mundo”, já não o das Índias, mas um outro não menos tempestuoso – o mundo interior, claro, o da alma e seus medos, desejos, angústias.

O disco funciona, então, como essa “barca do Inferno” em viagem por águas impregnadas de pathos, e, como (quase) todas as jornadas interiores, a embarcação não chegará nunca a lado nenhum – poeticamente, o álbum encerra com uma canção intitulada Buracos Negros, do ruído do mar revolto nos transportando para o silêncio do espaço, lugar do mesmo breu e solidão. A canção imprime, bem assim, a marca profundamente portuguesa do álbum (Eu Vou, por sua vez, é homenagem à música da lusofonia, de Paulo Flores a Mayra Andrade, passando por Sam The Kid), no que de “descobridor” (com a bonita ironia de ser um negro de origens africanas o destemido, e não mais o branco colonizador), mas também sofredor, ela comporta: saudade, sombra, marinheiro, tempestade, sal, são algumas das significantes palavras que se ouvem. A convocação do místico é latente nas numerosas ocasiões que Sp contempla elementos ou estados da natureza, ou quando se “animaliza” numa canção de amor frustrado como Lobo.

Mas a “viagem” em causa é também, como habitual em Deville, sónica, abraçando diferentes tonalidades e compondo com diversos e surpreendentes recursos (o belíssimo sax que encerra Pensar em Mim, a magnífica eufonia de piano, concertina, contrabaixo e drums tão jazzísticas quanto “dubstepianas” em Para Fora, a trazer à memória os Gotan Project). E se isso pode, por vezes, originar alguns desequilíbrios, não constrange nunca a existência de um inconfundível “som Sp”, não raramente experimental (na sonoridade em si mas também no rompimento com a estrutura convencional da canção) e no qual a percussão é secção garantidamente exuberante (tão sintonizada com a música bass como para, uns minutos depois, se dar ares de tribal, em qualquer caso contribuindo para a tal sensação em-movimento, de viagem). É esta heterodoxa sensibilidade que, neste disco, o põe muito mais a cantar – com uma abordagem pop que não agradará a todos – do que a rappar, ou a alternar entre a toada vagamente trip-hop (predominante) e a batida electro de Eu Sinto (infeliz, neste caso).

Longe, com um videoclip que merece ser visto, possui na sua economia – quantitativa, sim, mas sobretudo emocional – de palavras uma poética insuperável que a eleva a melhor momento do disco: “as estrelas hoje comunicam / nelas vejo um caminho / então estou caminhando só / mas nunca sozinho”. Produtor, cantor e rapper, letrista e engenheiro do (seu próprio) som, Sp assina aqui um dos mais interessantes – e ignorados – discos portugueses de 2017.

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