É Natal, não leve a família a mal

Para algumas famílias, a ameaça das discussões à mesa esconde-se atrás dos sonhos e aletrias. O que dizem os especialistas sobre a noite de Natal e como evitar conflitos?

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Natal, tempo de paz, de alegria, de família... Ou, para alguns, tempo de tensão, de discussões, de remexer em velhas feridas. O ideal era haver um guião sobre como podemos passar o Natal, mas todas as famílias são diferentes. O PÚBLICO perguntou a duas especialistas em relacionamentos familiares o que se deve levar para o convívio de Natal e como evitar os conflitos.

“Costumo dizer que, mesmo para os não-crentes, ainda bem que há Natal”, começa por declarar Margarida Cordo, psicóloga e terapeuta familiar. “É pelo menos um momento em que as pessoas, de forma geral, se preocupam um bocadinho mais com o tema da família. Se não houvesse pretexto, não se juntavam.”

“É uma época em que existe sempre ansiedade”, atira Margarida Vieitez, formada em Mediação Familiar e autora de vários livros sobre relacionamentos. Entre o stress das preparações e a antecipação do encontro com certos familiares, a reacção é perfeitamente normal, garante. Trata-se do “desconhecido”, uma situação que pode ser imprevisível, perante a qual “todos temos tendência para nos sentirmos ansiosos”. Ao mesmo tempo, comenta ainda, existe quase uma idealização: “Toda a gente quer passar essa noite ou esses dias da melhor forma possível.”

Para a especialista, é importante que as pessoas consigam fazer um ajuste de expectativas: “Somos imperfeitos e esta noite também não é uma noite perfeita.” Ou, pelo menos, não tem de ser. Até porque a “aceitação” dessas imperfeições é uma das palavras de ordem nesta ocasião. A expressão de afectos e de emoções, “sem necessidade de recorrer a máscaras”, é uma parte essencial do Natal. “Se não conseguimos ser com a nossa família quem genuinamente somos, então quem seremos no mundo lá fora, sem grandes defesas?”, questiona. “O que os seres humanos mais querem é sentir-se amados e aceites”, acrescenta ainda.

O convívio entre família, mais ou menos alargada, deve acontecer de forma natural — uma questão que as duas especialistas enfatizam. “As pedagogias fazem-se noutros momentos”, defende Margarida Cordo. “Temos de aprender a dar tempo ao bem-estar só porque sim” e transformar a ocasião num momento útil. “Temos de ter momentos de vida que sejam destinados ao perdão, ao apaziguamento, à aproximação, ao mostrar — não exibir — o lado melhor de cada um.”

“Planear parece-me que é para o mundo lá fora. Na família vamos tentar surpreendermo-nos. Ser o mais espontâneos e verdadeiros possível”, acrescenta a Margarida Vieitez. Mas há questões que podem guiar o convívio. Vieitez sugere que se fale, por exemplo, sobre os sonhos e interesses de cada um ou que se peça ajuda em relação a algum assunto, e Margarida Cordo propõe que se dê atenção às histórias que os avós tanto gostam de contar (e recontar). No fundo, resume ainda Vieitez, “qualquer actividade que faça todos sentirem que pertencem àquela família, com alegria e bem-estar”. 

Heranças e política

Para muitas famílias, a ameaça dos conflitos paira no ar na noite de Natal — quantos familiares não chegam já de pé atrás? Nesta data em que se reúne a família alargada, tendem a emergir certas intolerâncias e a abrirem-se antigas feridas. Há uma panóplia de assuntos que pode levar a discussões — heranças pendentes, política, futebol, religião...

Para as especialistas em relações familiares, os conflitos devem evitar-se ao máximo na noite de Natal. Não quer dizer que devam simplesmente ser ignorados, mas há uma altura e um lugar para tudo. “Todos os aspectos devem ser resolvidos. Agora, a coisa certa na hora errada resulta na coisa errada”, explica Margarida Cordo. “Acho que o Natal — exactamente porque é uma vez por ano e tenta mobilizar o melhor de nós — não é a altura para resolver todas as coisas que não se resolveram durante 364 dias.” Oferece ainda alguns exemplos: evitar tocar em temas fracturantes e provocatórios, sobretudo para as pessoas mais velhas ou mais conservadoras. Da mesma forma, se sabemos que uma pessoa é mais narcisista, evitar um confronto com as fragilidades da mesma — e, porque não, oferecer um elogio genuíno sobre o bolo que fez para o Natal?

No fundo, resume ainda, trata-se simplesmente de uma questão de delicadeza para com os outros. “Vivemos num tempo em que as pessoas são muito autocentradas e pouco delicadas umas com as outras.”

Margarida Vieitez sugere que repensemos alguns dos rótulos que colocamos nos outros. “Por que é que se parte do pressuposto que só se vai ver essa pessoa [novamente] daqui a um ano? Será que as coisas não podem ser diferentes?”, questiona.

O que fazer, então, quando o caldo está entornado? “O humor — que não é humor agressivo, mas simpático — causa sempre um bocadinho de dissonância e interrompe discussões”, sugere Margarida Cordo.

Não vale a pena interromper uma altercação com argumentos melindrosos como “não vamos falar nisto porque hoje é noite de Natal”. Vale a pena, sim, continua, começar um novo tema ou contar uma história agradável, interrompendo com engenho e desfocando as atenções da discussão que estava em curso.

“Esta noite vai ser uma noite de partilha de experiências e de sentidos”, comenta Margarida Vieitez. “Se o foco estiver nos afectos e na partilha, então, provavelmente, não haverá motivo para surgir qualquer espécie de conflito. Se tiver alguma coisa para resolver com essa pessoa, resolva nos dias a seguir.”

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