A honra ofendida de Francisco Assis

José Sócrates continua a ser o elefante no meio da sala do PS. Sinceramente, esperava de Assis um pouco mais do que fingir que ele não está lá.

A sequência de acontecimentos é esta: Catarina Martins deu uma entrevista ao Expresso onde afirmava que o PS era “permeável aos grandes interesses económicos”, uma frase tão original quanto dizer que a chuva cai do céu. Supersensível, Francisco Assis declarou-se ofendido, e classificou, num depoimento à Lusa, as afirmações de Catarina Martins como “lamentáveis”, “inadmissíveis” e um “ataque ao carácter do PS”, partido que no seu entender (suster o riso) “sempre colocou o interesse público acima de qualquer interesse particular”. Não satisfeito, na última quinta-feira regressou ao tema para fundamentar a sua posição num artigo no PÚBLICO, significativamente intitulado “A honra do Partido Socialista”.

O pessoal ligeiramente de direita e ligeiramente letrado, como é o meu caso, gosta de Francisco Assis. Se eu escrevesse no seu estilo gongórico, diria que Assis é uma personalidade assaz densa e complexa, dotada de sólida formação política e inteiramente desvinculado de qualquer tipo de culto dogmático. Como não escrevo, declaro apenas que é um homem ponderado, que dá mostras regulares de pensar pela própria cabeça, e que tem a vantagem de se opor desde o primeiro dia à actual solução de governo. Pode parecer pouco, mas dentro do PS é muito.

Contudo, para quem tanto critica os partidos de extrema-esquerda que apoiam o Governo, Francisco Assis lançou-se no seu texto do PÚBLICO numa reescrita da História digna dos piores dias estalinistas. Para Assis, a história gloriosa do PS resume-se à figura fundadora de Mário Soares e à sua luta para impor uma democracia de tipo ocidental em Portugal. Claro que todos os elogios que se façam ao Soares dos anos 70 são mais do que justos. Mas convém que tudo aquilo que aconteceu ao PS nas últimas duas décadas, e sobretudo entre 2005 e 2011, não seja vergonhosamente eliminado da fotografia.

Convém ainda lembrar que Francisco Assis, se nunca pertenceu ao núcleo mais próximo de José Sócrates, foi sempre um dos seus mais destacados defensores, até pela posição que ocupou enquanto líder parlamentar entre 2009 e 2011. Quando Sócrates perdeu as eleições para Passos Coelho, foi em redor da candidatura de Assis à liderança do PS que se reuniram os socratistas mais empedernidos, procurando evitar a vitória de António José Seguro. Assis conheceu o pior PS demasiado de perto para vir agora armar-se em virgem ofendida, clamando pela pureza de um partido que nas últimas duas décadas representou, como nenhum outro, o absoluto concubinato entre política e grandes interesses económicos.

Se Francisco Assis não quer escutar Catarina Martins, então que escute a sua camarada Ana Gomes, que ainda há dias declarou ao Observador: “O PS tem de fazer uma introspecção sobre como se deixou instrumentalizar por Sócrates”, em nome de “um projecto pessoal de poder e de enriquecimento”. Este óbvio ululante não pode ser afirmado apenas por Ana Gomes. Tem de ser assimilado, admitido e expiado pelo Partido Socialista como um todo, evitando as proclamações patéticas do grande campeão da democracia portuguesa, como se estivéssemos não em 2017 mas em 1977.

Sim, é verdade que Assis admite no seu artigo que “alguns cometeram erros e praticaram actos condenáveis em nome do PS”. Só que esta contrição é de tal forma comedida que chega a ser ofensiva. José Sócrates continua a ser o elefante no meio da sala do PS. Sinceramente, esperava de Francisco Assis um pouco mais do que fingir que ele não está lá.

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