A zaragata da Raríssimas

O que é mais importante nesta história é relevar a importância do jornalismo no escrutínio dos poderes.

É normal que depois da revelação da gestão nepotista e despudorada na associação Raríssimas se ouvissem explicações do ministro da tutela sobre as suas relações pessoais e políticas com a instituição e com a sua ex-dirigente; é normal que a Oposição queira explorar eventuais fragilidades do ministro Vieira da Silva para anular o efeito político da subida do rating da República; é normal que o PS defenda o ministro e ataque o instinto necrófago da Oposição; é normal que o Bloco e o PCP assobiem para o lado; é normal que os jornalistas pressionem o Governo para que todas as zonas cinzentas sejam o mais possível clarificadas; é normal que os cidadãos se indignem com o exemplo sórdido a TVI lhes fez entrar portas a dentro, que exijam responsabilidades, que protestem, que acusem. Mas, eis senão que, perante tanta “normalidade”, boa parte da intelligentsia arregaçou as mangas e dedicou-se a fazer o que tantas vezes faz com inegável sabedoria: transformou uma discussão importante e útil numa zaragata de rufiões onde o ódio impera.

Dizia há uns dias o Primeiro-Ministro que “este foi um ano particularmente saboroso para Portugal” para logo a seguir vir o Presidente apelar que “não haja ideia de que o ano foi todo muito bom”. Paradoxalmente, ambos têm razão. Há méritos (e culpas), factos (e argumentos) que podem ser aceites por quem está no poder e por quem está na oposição, por gente de esquerda e de direita, do Norte ou do Sul, do Interior ou do Litoral. O caso da Raríssimas tinha imensas culpas e factos capazes de promover consensos e estabelecer fronteiras. Ninguém admite que se use dinheiro de uma IPSS para comprar gambas. Ninguém tolera que no século XXI haja uma dirigente de uma associação que exige aos seus funcionários que se levante à sua passagem. Ninguém percebe que ninguém tenha dado conta do que se estava a passar. Mas todas estas constatações óbvias acabaram subalternizadas. O tom agreste e por vezes ofensivo que tomou de assalto o debate sobre a Raríssimas é sinal que a discussão pública se entrincheirou em pequenos redutos onde ouvir a opinião do outro significa uma pesada derrota.

A cultura prepotente e interesseira que criou Paula Brito e Costa salvou-se do inquérito porque, como tudo o que acontece em Portugal, não há vida para lá do Governo e dos partidos. À direita ouve-se que o ministro Vieira da Silva é o rosto do escândalo que envolve favores e afectos; à esquerda diz-se que a ex-presidente até foi vista (oh! Escândalo) numa sessão pública do PSD. E entre uns e outros esquece-se o essencial: que há um mundo feito e desfeito por indivíduos que merece ser discutido e escrutinado sem que seja necessária a chancela da política institucional. Se a gestão da Raríssimas é sinal do vazio da sociedade civil, a forma com o país a tem vindo a discutir é a prova de que esse vazio é um buraco sem fundo. É mais fácil discutir o Governo que existe do que uma sociedade civil frágil e dependente desse Governo. Até porque é nesse campo que os arautos do radicalismo discursivo e dos demolidores de consensos dispõem do melhor terreno para atacar.  

Para a esquerda, a culpa está na origem das notícias, que apenas nos provava a existência de um clima deletério na associação – como se as grandes histórias do jornalismo de investigação não nascessem de guerras fratricidas no interior das empresas, dos governos ou das instituições. Para o deputado João Galamba, o problema (ou parte do problema) estava nos denunciantes que, em vez de abrirem o jogo à Assembleia Geral, fizeram queixinhas à imprensa – afirmando subliminarmente que, no futuro, todo e qualquer atentado ao interesse público deverá ser tratado na discrição dos gabinetes ou no formalismo dos ofícios para as autoridades superiores. Para a Direita, o facto de Vieira da Silva ter aceitado um cargo não remunerado na Raríssimas jamais podia ser prova de boa cidadania, mas apenas mais uma ponta da nebulosa rede de favores que se agita com pedidos de “esclarecimento”.

A forma de actuar de uma oposição enraivecida pela sua própria impotência e incompetência leva o PSD e o CDS fazem o papel de cordeirinhos disfarçados de lobos. Uma aberração que o seu eleitorado tem dificuldades entender. Muito mais do que apurar a verdade, o que lhes interessa é causar danos à imagem do Governo. Faz parte das regras do jogo democrático, é certo, mas apenas desde que em causa haja factos e interpretações credíveis proporcionais. José da Silva Peneda deu-lhes uma lição a sério. Ele, do PSD, faria o mesmo que Vieira da Silva. O que está em causa (ficou razoavelmente provado na audição parlamentar ao ministro Vieira da Silva) não é a suspeita que o Governo favoreceu a Raríssimas ou a Raríssimas favoreceu alguém do Governo. Nem tudo o que se passa no país tem de ser culpa do Governo.

O que é mais importante nesta história é relevar a importância do jornalismo (o da investigação, nem tanto o jornalismo inquisitório que se lhe seguiu em muitos casos) no escrutínio dos poderes. É um caso que mostra que tantas e tantas vezes a sociedade civil acaba por ser tolerante e conivente com teias de prepotência, negligência e medo que são afinal os gérmenes de figuras assustadoras como Paula Brito e Costa. É uma história que reflecte os perigos da exposição demorada ao poder. É um sarilho que nos faz questionar a celeridade e a eficácia das instituições públicas em fiscalizar as instituições do terceiro sector que beneficiam de apoios públicos. É uma responsabilidade que exige uma linha de separação clara entre a vocação para tiranete da ex-presidente da Raríssimas e o brio de centenas ou milhares de cidadãos que se empenham em dar o seu tempo a IPSS apenas com o propósito de serem úteis às suas comunidades.

Tudo se discute e tudo se deve discutir, mas para que a discussão seja útil não se deve circunscrever ao clima de guerrilha que, à esquerda e à direita, ameaça contaminar coisas importantes como o escrutínio de favores públicos, das manobras conspiratórias ou da venalidade do poder com aquela dose de fervor partidário que tolda a racionalidade e consolida as verdades alternativas. Quando se cai em excesso no maniqueísmo da clubite, deixa-se de procurar as causas profundas dos problemas e entra-se no jogo faccioso propenso à mentira, ao populismo e à manipulação. Para que se cultive melhor a dúvida persistente e a abertura de espírito, o jornalismo tem de reflectir mais; o poder tem de se distender e deixar de ver qualquer crítica como um atentado (como com nobreza o ministro Vieira da Silva fez ao reconhecer a sua “fragilidade” política); e a oposição tem de perceber que o seu persistente instinto para fazer sangue irrita as pessoas sensatas. Bem se sabe que todos estes desejos são cada vez mais difíceis de atender. Mas, como é Natal…

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