Classificar segurança militar desclassificada

Não tem qualquer base legal vedar o acesso a documentos com tal classificação por quem não está militarmente credenciado.

Há dias, o Exército entregou ao Parlamento vários documentos sobre o caso de Tancos, a que atribuiu a classificação de segurança “confidencial”. Impôs assim restrições ao acesso dos deputados a esses documentos. Poucos reagiram a isto. Mas é grave e intolerável. Porquê?

A classificação de segurança de documentos militares está regulada por um documento chamado “SEGMIL1”, com a classificação de segurança “reservado”. O SEGMIL1 foi aprovado em 15.11.1986 pelo Conselho de Chefes de Estado-Maior, um órgão da administração directa do Estado, no Ministério da Defesa Nacional. A aprovação foi feita com base na alínea d) do n.º 1 do art.6.º do Decreto-Lei n.º 226/85, que diz: “1. O Conselho de Chefes de Estado-Maior coordena as actividades do Serviço de Informações Militares, deliberando, nomeadamente, sobre: [...] a) Regulamentos e instruções específicos da informação militar e da contra-informação.” Esta norma não habilita a classificar o regulamento da classificação de documentos militares. Assim, a classificação de segurança de documentos militares, por ser regulada por um regulamento administrativo sem base legal, é nula.

Mais! A classificação do SEGMIL1 não está abrangida pelos critérios definidos no art.2.º do DL 226/85 para caracterizar as notícias e informações militares, que poderão justificar a sua classificação: não é notícia nem informação militar; é anterior a isso.

Mas é pior! Mesmo que fosse admitido que a classificação de segurança se podia abrigar na referida base legal, só pode estar vinculado às normas quem as conhece e tem acesso a elas. Só quem é credenciado e pode aceder ao SEGMIL1 está sujeito ao SEGMIL1 e às normas que ele estabelece; e mais ninguém. Logo, só quem está na efectividade de serviço nas Forças Armadas pode ser abrangido pelas normas de classificação de segurança militar. Não tem qualquer base legal vedar o acesso a documentos com tal classificação por quem não está militarmente credenciado. Ainda por cima, quando o regulamento da classificação de segurança é ele mesmo classificado.

Tentar impor a vinculação a quem não tem acesso a normas (só acessíveis a alguns) é uma restrição aberrante em geral e num Estado de Direito em especial (art.13.º, n.º 2 e n.º 3 do art.18.º, e n.º 3 do art.29.º, todos da CRP; se fosse um regulamento do Governo: al. h) do n.º 1 e n.º 2 do art.119.º da CRP; sendo um regulamento da Administração Pública: n.º 3 do art.119.º da CRP; e art.139.º do CPA).

Que os órgãos de soberania (por exemplo, Parlamento e tribunais) aceitem que os chefes militares lhes imponham restrições de acesso a documentos, como o SEGMIL1, com esta fundamentação, é incrível e inadmissível.

Não custa imaginar como alguns oficiais das Forças Armadas podem usar esta situação para esconder matérias e factos que desejam manter fora do escrutínio público. Mas que o Estado de Direito permita esta situação é incompreensível.

Claro que deve haver classificação de segurança de documentos militares, até pelas relações internacionais. Mas tem de respeitar o Estado de Direito.

Assim, como envolve a restrição de liberdades, devia estar enquadrada por uma lei da Assembleia da República e regulada por diplomas legais. As normas de classificação têm de ser acessíveis a qualquer cidadão, incluindo os órgãos de soberania, para que todos as conheçam e estejam a elas sujeitos.

Como se explica que desde 1986 os órgãos de soberania eleitos e os chefes militares (sobretudo estes) não tenham arranjado tempo para regular correctamente uma matéria tão importante para o país e para as suas relações externas?

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