Viena 2000, Varsóvia 2017

Em 2000, um partido de extrema-direita chegou ao governo da Áustria. Foi um choque para a União Europeia. Hoje, a Europa vê-se a braços com uma crise semelhante na Polónia e volta a ver o mesmo partido austríaco chegar ao poder em Viena.

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A União Europeia já se viu confrontada com uma situação idêntica à que hoje enfrenta na Polónia quando, em Fevereiro de 2000, um partido de extrema-direita entrou no Governo da Áustria, coligado com os sociais-cristão de Wolfgang Schussel.

Joerg Haider era, então, o líder do partido de extrema-direita austríaco e trazia na bagagem elogios descarados ao regime nazi. Portugal detinha na altura a presidência da União Europeia e coube a António Guterres gerir esta questão delicada, que levou à decisão de aplicar sanções diplomáticas à Áustria, deixando-a politicamente isolada.

A decisão foi tomada por unanimidade entre 14 dos 15 países que então eram membros da União Europeia. A Áustria, a Finlândia e a Suécia juntaram-se à União em 1995, na sequência do fim da Guerra Fria, que impunha aos dois primeiros um estatuto de neutralidade entre os dois grandes blocos em confronto. A Suécia era neutral por escolha própria.

No Outono de 1999, os austríacos deram ao partido de Haider 27% dos votos e a vitória aos sociais-cristãos de Wolfgang Schussel.

A Europa tinha fixado os chamados critérios de Copenhaga, exigidos a todos os países da Europa de Leste que se libertaram do comunismo, o primeiro dos quais era o respeito pela democracia, o Estado de Direito, o respeito pelas minorias e pelos direitos humanos. A França de Jacques Chirac (centro-direita) foi uma das vozes mais duras a favor da aplicação de sanções a Viena. Juntaram-se-lhe a Alemanha (Joschka Fischer era, então, o chefe da Diplomacia) e a Bélgica.

Na Áustria, os critérios acabaram por dar a Haider mais argumentos contra uma Europa que dizia não respeitar a soberania do povo. Ameaçou bloquear qualquer reforma institucional europeia ou o alargamento a Leste.

A esperança de que as sanções levassem Haider a sair do Governo não resultou. As divisões entre os 14 membros começaram a aparecer. Foi preciso Guterres encontrar uma solução de compromisso, já no fim da presidência portuguesa, que salvasse a face da Europa e fosse aceitável pelo Governo austríaco.

A presidência portuguesa entregou ao presidente do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem a missão de indicar três personalidades que apresentassem um relatório sobre alguns aspectos mais polémicos da situação política na Áustria. O relatório final chegou a acusar o partido de Haider de utilizar uma linguagem “xenófoba e até racista” mas não foi mais longe. Schussel e Haider assinaram uma carta, garantindo o respeito absoluto pelos valores europeus. O medo de alimentar os populismos e os nacionalismos em casa acabou por fazer recuar os líderes.

O Tratado de Nice, já negociado pela presidência francesa em Dezembro de 2000, prevê que o Conselho Europeu possa decretar a suspensão de alguns direitos a um Estado-membro, se estiver na presença de uma “quebra séria e persistente dos direitos fundamentais”. O Tratado de Lisboa clarifica ainda mais esta possibilidade.

Na Polónia, as entorses legais aos princípios fundadores já existem, com a aprovação de medidas que limitam a independência dos tribunais e atacam a imprensa livre. A Comissão acaba de accionar o Artigo 7.º do Tratado. Berlim e Paris aumentaram o tom das críticas a Varsóvia. O Governo polaco, de matriz nacionalista, já disse que conta com o veto da Hungria a qualquer decisão europeia.

É uma situação complicada para a Europa, como foi há 17 anos. Tocar nos princípios fundadores da integração é abrir caminho ao risco de mudança de natureza do próprio projecto europeu, o que seria, no longo prazo, uma tragédia. Isolar um país por esta razão poderá alimentar ainda mais as forças políticas nacionalistas, que invocam o direito soberano a fazer o que quiserem, mesmo que não seja verdade. A União Europeia assenta na partilha de soberania entre os Estados-membros e nenhum país se pode dar ao luxo de querer essa partilha, com todas as suas vantagens, apenas quando lhe convém.

A Comissão dá três meses a Varsóvia para alterar a legislação que motivou o aviso de incumprimento. Cabe-lhe fazer cumprir a legislação europeia e as negociações com Varsóvia já decorrem há quase dois anos, sem qualquer efeito prático. O holandês Frans Timmermans, primeiro vice-presidente da Comissão e uma das suas figuras mais respeitadas, teve o cuidado de lembrar o contributo dos polacos para a queda do Muro de Berlim, incitando-os a permanecerem fiéis aos valores e aos princípios europeus que defendiam na altura. Mas também lembrou que a separação de poderes nas democracias é “de importância existencial, não apenas para a nação polaca mas para toda a União”.

As sanções podem ir desde a suspensão do direito de voto até à suspensão das transferências financeiras, das quais a Polónia é hoje o país mais beneficiado em termos absolutos. Podem ser aprovadas por uma maioria de países que represente a maioria da população da União. No caso, calcula-se que serão necessários 22 países em 28.

Regressando a Viena e à crise de 2000, a ascensão ao poder de um partido assumidamente de extrema-direita gerou um debate intenso. Para alguns, os austríacos ainda não tinham resolvido o seu passado de colaboração com o regime nazi depois do Anschluss de 1938. Na verdade, foram as potências ocidentais vencedoras da II Guerra que decidiram colocar a Áustria do lado das vítimas da agressão nazi, mantendo o território ocupado pelas quatro potências vencedores (até 1955) e evitando a ocupação pura e simples pelo exército soviético, como aconteceu na maioria dos países da Europa de Leste.

Viena era, antes da II Guerra, um centro cultural e científico da maior sofisticação europeia, o que não a impediu de deixar-se cair no abismo nazi. Linha da frente da Guerra Fria, durante décadas o país foi governado pelos dois grandes partidos das principais famílias europeias: sociais-democratas e sociais-cristãos, criando uma espécie de duopólio que alimentou o nepotismo e a corrupção. Em 2000, esse sistema já estava a ser posto em causa com o fim da divisão do continente europeu e a adesão à União Europeia.

Haider foi o primeiro sinal. Hoje, os seus sucessores podem regressar mais “limpos” do passado, mas são ainda capazes de apelar à xenofobia e ao populismo, numa situação em que o populismo e a xenofobia começam a ser mais “normais” do que seria desejável. 

 

 

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