Quando a resposta do Estado tarda, é a sociedade civil que resiste

Seis meses depois dos incêndios de Pedrógão Grande, dois meses depois dos incêndios da Beira Interior, como se vive nos territórios que acabaram quase calcinados e como se ultrapassa o trauma de 110 mortos, 1500 casas destruídas, 500 empresas afectadas, dezenas de milhares de pessoas que viram os seus cultivos destruídos e animais perdidos? Sobrevive-se. Mais com a ajuda de voluntários e movimentos solidários do que com as respostas institucionais que demoram muito a chegar ao terreno. A justiça, essa, já começou a procurar culpados. Pedrógão Grande já tem dois arguidos.

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De cada vez que abre a janela da cozinha, Irene Santos confronta-se com o vale enegrecido. O céu está azul, os rebentos de eucalipto agarram-se aos troncos queimados, a tentar fazer regressar o verde, mas Irene só vê o preto que lhe pinta o horizonte. Todos os dias pensa na casa dos vizinhos e na mesa que estava pronta e posta para nove pessoas. Nenhuma delas voltou. Todas morreram na estrada, a fugir do fogo de 17 de Junho. Viver em Várzeas, em Pobrais, em Nodeirinho, na Barraca da Boavista, em Vila Facaia, lugares tristemente conhecidos por causa do incêndio de Pedrógão Grande, continua a ser sinónimo de provação, de tristeza, de dor. 

O marido de Irene, Cesário Santos, está vestido de fato-macaco, empoleirado numa estrutura de ferro que teimosamente tenta transformar em barracão. Precisa de arranjar um sítio para guardar a lenha. Passaram seis meses, e na memória tudo está vivo, como se fosse ontem. E, afinal, já tanta coisa aconteceu, tanta coisa mudou. Já esteve a dormir semanas a fio com o telhado esburacado, os tacos retirados a expor o cimento frio do chão — até que ficassem concluídas as obras de reparação que o Estado lhe fez na casa. A casa começou a arder pelo telhado e se água impediu o fogo, também deixou danos.

“As obras terminaram na semana passada”, explica Irene. Mas não chegaram a ficar sem telhado para dormir. A mesma sorte não teve todo o equipamento agrícola, resultado “do trabalho de uma vida inteira”, como diz Irene. “Arderam-me alfaias, tractores, fresas, moinhos, atomizador, rachador de lenha…”, enumera Cesário, interrompendo um rol que se adivinha interminável, para o forçar à soma final da contabilidade dos prejuízos: ultrapassou os 46 mil euros. “Recebi 4980 euros. Caíram-me na conta no final de Novembro”, informou, explicando que esta não chegou para pagar sequer os 118 metros quadrados de área ardida. “Eles pagam 180 euros o metro quadrado. Mas, acima dos 5000 euros de prejuízo era preciso fazer um projecto. Eu, com 73 anos, vou fazer projecto de quê e para quê? Já não tenho forças para reconstruir tudo de novo”, termina, com um encolher de ombros e um esgar de conformação.

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Na casa de Irene e Cesário Santos, acabaram as obras de reconstrução, uma das 34 primeiras intervenções do Fundo Revita, cujo objectivo primordial é custear a reconstrução das habitações afectadas pelos incêndios de 17 de Junho

Depois do fatídico incêndio de Pedrógão Grande — e que afectou os concelhos vizinhos de Castanheira de Pêra, Figueiró dos Vinhos, Pampilhosa da Serra, Góis e Penela —, não se trata apenas de fazer o luto dos que morreram. Foram muitos, 65. E o luto tem muitas fases, muitos ritmos, é um processo necessariamente longo. Trata-se, sobretudo, de encarar o trauma. “Somos uma comunidade de desastre. Passou aqui uma guerra. As pessoas têm de perceber isso, nós precisamos de falar sobre isto, enfrentar o trauma”, sintetiza Nádia Piazza, a presidente da Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande (AVIPG).

E Irene Santos, 70 anos, é a primeira a admiti-lo. “Não aguentei mais. Tive de procurar ajuda. Ando no psiquiatra, estou medicada. Ainda não está a ser fácil, custa-me dormir. Agora estou a tentar convencer o meu marido a fazer o mesmo. Ele diz que não precisa, mas eu sei que ele não anda bem”, garante, num sussurro para que ele não a ouça. 

Cesário Santos recebeu uma pequena fatia dos 2,4 milhões de euros que constituem praticamente a única verba que o Governo tirou do Orçamento do Estado para aplicar no fundo Revita, a instituição criada para gerir os donativos que foram chegando logo após a tragédia e que, de acordo com fontes do Governo, estavam, no início de Dezembro, cifrados em 3,7 milhões de euros. O objectivo primordial deste fundo é custear a reconstrução das habitações afectadas pelos incêndios de 17 de Junho, ou seja, as 264 casas identificadas e cujo custo de reconstrução ascende a 9,2 milhões de euros. O Revita tem directamente a seu cargo 92 casas, representando um total de apoio de 2,9 milhões de euros.

O reforço do Revita serviu para apoiar 763 produtores agrícolas e de agricultura de subsistência. Esse anúncio surgiu já em Novembro, cerca de cinco meses depois do fatídico dia. “Não se trata apenas de reconstruir, mas também de restituir um modo de vida e devolver a esperança a estas pessoas”, disse na altura Rui Fiolhais, presidente do Instituto da Segurança Social e que ficou também a presidir o conselho de gestão do Fundo Revita.

O difícil é arrancar com a obra

O maior esforço financeiro está, pois, destinado à reconstrução das casas. A 7 de Dezembro, as informações oficiais apontavam para o facto de estarem em curso cerca de 80 intervenções e de o Fundo Revita já ter pago obras de primeiras habitações em pouco mais de 110 mil euros — uma verba que lhe permite dizer que já tem 34 obras concluídas, sendo uma delas a de Cesário Santos. Mas há obras de monta que ainda estão todas por entregar. E por garantir financiamento. Por isso, continuam a surgir iniciativas como aquela que foi divulgada na semana passada pelo presidente da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de criar um fundo para apoio às vítimas dos incêndios com o apuro dos jogos de Natal. Entretanto, há outras instituições no terreno a avançar com obras. A SIC Esperança, por exemplo, que está a gerir donativos de 850 mil euros (angariados na campanha “Um abraço a Portugal”) e vai reconstruir ou reabilitar 26 habitações.

O difícil é arrancar com a obra — decidir quem paga, quem faz o projecto, quem faz a construção. Quando chega a altura de pôr as mãos na massa e começar a montar tijolos, tudo avança rapidamente — “o Inverno atrasou-se e isso ajuda o nosso trabalho”, diz Luiz Gama, funcionário da construção civil de uma empresa de Alvaiázere e que anda pela região desde que terminaram os incêndios. Está a reconstruir um barracão para guardar ração e animais, no lugar de Pobrais, e demorará mais três semanas. “O trabalho por aqui não pára. Há muito por fazer”, diz. Do outro lado da rua, os funcionários da empresa Justo Rigor, de Pedrógão Grande, apressam-se a terminar uma casa que está a ser reconstruída a partir do chão, a placa de obra denuncia o orçamento: 55 mil euros. Mas não diz que está a ter modificações: a casa tinha cinco quartos no original, vai ser reconstruída só com dois. “Mas fica tudo pronto para a família ampliar quando puder e conseguir”, explica um dos funcionários, que pediu para não ser identificado.

Cesário e Irene Santos já não esperam mais nada — nem do Estado nem de ninguém. “Eu demorei mês e meio para voltar a ter coragem e vir até aqui, onde nos ardeu tudo o que trabalhámos tanto para construir. Já me bastava abrir a janela da cozinha para encarar de frente tudo o que aconteceu. Já me bastava olhar para o carro e lembrar-me que foi o meu primo que o veio salvar e buscar, e, à conta disso, ardeu o dele. E a seguir lembro-me de que a mulher dele ainda está no hospital a recuperar das queimaduras pelo corpo todo. É tudo muito duro. É tudo muito triste”, termina.

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"Passou aqui uma guerra", sintetiza Nádia Piazza, a presidente da Associação das Vítimas dos Incêndios de Pedrógão Grande

Um antes e um depois de Pedrógão

Houve um antes e um depois deste 17 de Junho, não só para as vítimas mortais e os seus familiares, ou para toda a comunidade de residentes daqueles seis concelhos. Foi, na verdade, um despertar de consciência para todo o país. “Foi quando descobrimos que era possível morrer dentro de um carro a fugir de um fogo”, disse Emília Esquina, na aldeia de Travancinha, concelho de Seia. Ela pensou várias vezes nisso, quatro meses depois, quando andava aturdida a tentar acudir ora à sua casa e aos seus bens, ora ao alojamento rural Chão do Rio, onde trabalha, e que naquela noite de 15 de Outubro estava com uma taxa de ocupação de 50%, quando tudo à volta estava a arder.

Em Outubro, com a ajuda do furacão Ofélia ao largo dos Açores, houve mais concelhos afectados, e nessas 24 horas ardeu tanto como durante o ano inteiro (Pedrógão Grande incluído): mais de 220 mil hectares de floresta, 44 concelhos atingidos, foi o pior dia de sempre em termos de incêndios. Foram atingidas 1254 casas, há prejuízos reportados em 484 empresas, 45 pessoas perderam a vida.

Em Travancinha não morreu ninguém — “O que não deixa de ser um milagre, o fogo veio de repente e de todo o lado”, emociona-se Emília Esquina. “Estava muito calor e muito vento. Víamos o fogo lá ao longe do lado da serra e não acreditava que chegasse aqui. Foi isso que disse aos hóspedes. Mesmo assim, andamos a fazer o rescaldo, molhámos tudo, para prevenir. Quando vi o fogo a vir do lado de Oliveira do Hospital, já comecei a temer. Andava cá, no Chão do Rio, e lá, na minha casa, à entrada da aldeia. Acabei por vir dizer aos hóspedes que era melhor arrumarem as coisas e sair. Pedi-lhes para se juntarem no centro da aldeia. Que não fossem para mais lado nenhum, que não fossem para a estrada. Lembrei-me de Pedrógão”, insiste.

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Emília Esquina e Sofia Borges trabalham com Catarina Vieira, proprietária do Turismo de Aldeia Chão do Rio. Nos incêndios de 15 de Outubro, Emília andou a tentar salvar o que era seu e a acudir aos hóspedes

Uma casa estava ocupada com um casal de estrangeiros, outra com um casal de portugueses, uma terceira com uma mãe e uma criança. Os portugueses acabaram recolhidos por vizinhos, os estrangeiros ficaram dentro do carro, porque ninguém sabia falar com eles.

Emília ainda soluça quando se recorda da aflição e se vê, de novo, ali no meio do hotel a gritar por ajuda, sem que ninguém a viesse socorrer. “O meu instinto foi ligar a autobomba e andei a tentar apagar o fogo. Gritei, chorei, vi-me sozinha, chamas por todo o lado. Tive de desistir e fui a correr para os meus. Encontrei um polícia ali a dizer, a ‘senhora não pega no carro’! ‘Mas eu tenho de ir’, gritei. Cheguei à frente e o estaleiro do meu vizinho já ardia. Eu daqui não passo, pensei. Mas tinha de passar. Não estava na minha hora. Com o nascer do dia, chegar aqui e ver metade do hotel destruído, a mata toda queimada, chorei que me desalmei”, termina.

A dois meses do Natal e da passagem de ano, uma época de muita procura nas aldeias da serra, a tristeza de Emília Esquina não era infundada. Ela perdeu não apenas as batatas (“e este ano a colheita tinha sido boa”), as couves e o azeite e as galinhas poedeiras — poupou a casa mas ardeu-lhe o resto.

Achou que também ia perder o emprego. Ela e Sofia Borges, as duas mulheres nadas e criadas em Travancinha e que são o braço direito e esquerdo da proprietária, Catarina Vieira. Mas a dona do Turismo de Aldeia Chão do Rio não se deixou esmorecer. Encontrou no facto de os carvalhos que havia plantado pela sua mão há dez anos ainda estarem de pé o sinal de que precisava para confiar que devia arregaçar as mangas e não desistir. A primeira opção foi cancelar todas as reservas e avisar do encerramento do alojamento até à Páscoa.

Depois, ao negrume deixado pelos incêndios veio somar-se a escuridão da incerteza. Era preciso começar de novo, recuperar facturas, redesenhar projectos, replantar, reconstruir. Haverá apoios? Pedrógão voltou a ser exemplo, e todos leram as notícias a dizer que o dinheiro dos apoios ainda não chegou ao destino, que a maior parte das casas reconstruídas não iriam estar prontas a tempo do Natal, como tinha pedido o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, numa das muitas intervenções públicas que tem feito sobre o tema.

Marcelo prometeu que não ia abandonar as vítimas dos incêndios — e a agenda para as festas de fim de ano também já está anunciada: o Presidente da República vai passar o dia 25 de Dezembro em Pedrógão e o dia 1 de Janeiro em Oliveira do Hospital, um dos concelhos mais atingidos pelos incêndios de Outubro (ardeu 98,1% do concelho, segundo os dados oficiais disponibilizados pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro).

O poeta Sá de Miranda perguntava num soneto o que fazer quando tudo arde”, e Catarina Vieira escolheu inspirar-se na resiliência que encontrou em toda a população de Travancinha para não desistir do seu sonho — porque foi um sonho que a levou a construir aquele refúgio na montanha. “Foi preciso saber esperar. Mas a legislação lá apareceu e os apoios virão a seguir. Ter aqui um conjunto de voluntários a ajudar-nos a limpar a mata foi a injecção de energia que eu precisava para acreditar que valia a pena recomeçar”, comenta a empresária.

O passo seguinte foi accionar o seguro (“foram muito sensíveis aos nossos argumentos e pagaram o adiantamento de que precisava para arrancar com o processo”, explica Catarina); depois, foi começar reuniões com a Câmara de Seia e esperar para ver. “A própria câmara também não sabia como é que as coisas iam ser, se ia haver legislação especial, se os projectos podiam ser simplificados. Tivemos todos de ter paciência”, admite. Agora, o objectivo é abrir as portas de novo aos turistas por altura da Páscoa.

Jose Freire e Prazeres da Silva são dos últimos moradores na aldeia de Coucedeira, concelho de Seia. Paulo Pimenta
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Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Cláudio Guerra, gerente da empresa J. Guerra, com o irmão: ainda não fizeram o levantamento total dos prejuízos mas têm uma estimativa de 15 milhões Paulo Pimenta
Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Fabrica de Sirgaria e Passamanarias J. Guerra, Oliveira do Hospital Paulo Pimenta
Fernando Tavares pereira é o proprietário de uma das casas destruídas em Midões Paulo Pimenta
Midões Paulo Pimenta
Rita Cruz tinha acabado de comprar um solar em Midões para se mudar de Lisboa com os filhos Paulo Pimenta
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Isabel Costa e o marido entre os escombros do que era o posto de trabalho de Isabel, um salto de cabeleireiro há já 17 anos, em Midões Paulo Pimenta
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Irene e Cesário Santos perderam todo o equipamento agrícola e as obras de recuperação da casa, que acabaram há duas semanas, estiveram a cargo do fundo Revita Paulo Pimenta
Nos vales da Benfeita e Monte Frio, concelho de Arganil, há 150 adultos e 50 crianças que ficaram sem casa. Paulo Pimenta
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Jose Freire e Prazeres da Silva são dos últimos moradores na aldeia de Coucedeira, concelho de Seia. Paulo Pimenta

Apoios além dos prejuízos cobertos pelo seguro

Os incêndios de 15 e 16 de Outubro já foram declarados como o maior sinistro da história da actividade seguradora em Portugal. As empresas de seguros ainda andam no terreno a fazer as peritagens dos estragos, mas entre as ocorrências participadas já há 4177 sinistros cobertos por apólices de seguros — a que corresponde um valor agregado de danos (pagos ou provisionados) superior a 230 milhões de euros — dos quais, 30 milhões já foram efectivamente pagos. De acordo com a Associação Portuguesa de Seguradoras, três mil sinistros dizem respeito a seguros de habitações e cerca de 700 a seguros de actividades comerciais e industriais.

A dúvida de Catarina Vieira, e porventura de todos os empresários da área do turismo e não só, é saber com que apoios contar para além dos prejuízos cobertos pelo seguro. De acordo com o Turismo de Portugal, as infra-estruturas turísticas que declararam ter sofrido danos no decorrer dos incêndios de Outubro foram 40, entre parques de campismo e empresas de animação turística até alojamentos locais e hotéis de cinco estrelas. Foi aberta uma linha de crédito a empresas de turismo no valor de 1,5 milhões de euros para apoio à tesouraria e que abrange 11 concelhos directamente afectados, e até ao final da primeira semana de Dezembro haviam sido apresentadas 24 candidaturas, das quais foram aprovadas 14, com um financiamento associado de 516 mil euros.

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Todas estas coisas demoram o seu tempo, mas é impossível não reparar que também houve diferenças nas reacções governamentais em Junho e em Outubro. Na sequência da tragédia de Pedrógão Grande, o Governo demorou a assumir responsabilidades — pediu primeiro estudos, relatórios, conclusões a uma comissão técnica independente. E, em termos de orçamento, o que fez foi disponibilizar-se para gerir a vaga de donativos, que foi avassaladora, e assim surgiu o Revita. Em Outubro, a reacção foi diferente e quase imediata — só foi notado, sobretudo, a ausência do pedido de desculpas e o ruidoso puxão de orelhas ao Governo deixado por Marcelo Rebelo de Sousa.

“Depois de tudo o que aconteceu em Junho, fomos sujeitos a três investigações, relatórios para todo o lado. Em Outubro, não foi preciso relatório nenhum. O Estado fez o que devia ter feito logo no início, em Junho. Assumir as suas responsabilidades. E depois apurar o que aconteceu e daí extrair consequências. O que se passou em Pedrógão é, também por isso, incompreensível”, acusa Nádia Piazza.

Portugueses de quantas categorias?

Ana Abrunhosa, presidente da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Centro (CCDR-C) tem sido, no terreno, o elemento principal, em representação do Governo, a assegurar a gestão deste “enormíssimo e complexo processo”. Admite que pode parecer que tudo demora muito tempo, mas garante que na sua gestão e na sua vida não tem entrado outra prioridade que não esta: a de resolver os muitos problemas que os incêndios, primeiro de Junho, depois de Outubro, deixaram na região que tutela. Ana Abrunhosa sabe bem o momento em que percebeu que “a vida ia mudar”: “Quando comecei a receber telefonemas dos autarcas na noite de 15 de Outubro, aflitos, a dizer que estava tudo a arder, que eram impossível saber quantas pessoas tinham morrido.” Pedrógão ainda estava por resolver, agora vinha “tudo de novo, numa área e numa dispersão de território ainda maior”.

Pedrógão, admite, já tinha sido, e ainda é, um dossier muito complexo, por envolver uma infinidade de áreas e instituições. Houve reuniões e decisões a tomar juntamente com câmaras, Infra-estruturas de Portugal, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana, Autoridade Nacional de Protecção Civil, Instituto de Segurança Social, Turismo de Portugal, IAPMEI, Ordem dos Engenheiros, Ordem dos Arquitectos... A lista não termina, e Ana Abrunhosa diz ter orgulho na equipa que tem a trabalhar consigo e que lhe permitiu ter começado a dar respostas concretas no terreno, sobretudo no que respeita à recuperação das casas. “Infelizmente, não vamos cumprir o desejo do Presidente e ter as pessoas todas de regresso a sua casa pelo Natal. Não foi, de todo, possível. Sei que para as pessoas é uma desilusão e toda esta espera parece-lhes uma eternidade. Mas foi preciso fazer este trabalho”, explica Ana Abrunhosa.

A presidente da CCDR-C refere-se, por exemplo, aos critérios que ajudam a definir o que é uma casa de primeira ou de segunda habitação — porque só as primeiras, aquelas que têm residentes em permanência durante todo o ano, terão apoio prioritário. Ana Abrunhosa sabe que vão surgir dúvidas, como aquela que Rita Cruz, professora, com três filhos de 4, 7 e 9 anos de idade expôs em Midões. “Comprei uma casa no centro da vila, mas ainda não me tinha mudado porque precisava de obras. Estou em casa dos meus sogros, e agora acham que isto é segunda habitação. E só para repor a cobertura pedem-me 40 mil euros. Que eu não tenho”, desabafa.

“Não é possível planear tudo, resolver tudo, com a rapidez que as pessoas precisam e merecem. O limite vai ser sempre a lei e a boa gestão dos dinheiros públicos. Vamos sempre tentar resolver todos os problemas. Acho, até, que estamos a conseguir dar respostas em tempo recorde. Se não fazemos mais, não é por falta de prioridade e de empenho”, afirma Ana Abrunhosa 

O tempo que foi investido após o dia 17 de Junho a definir metodologias, a estabelecer métricas, a organizar equipas de intervenção e de trabalho acabou por servir também em Outubro. “Foi voltar a aplicar aquilo que conseguimos estabilizar para Junho. Só foi possível agir com tanta rapidez porque tínhamos uma metodologia montada e testada no terreno”, explica a presidente da CCDR-C. 

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Porém, nota Luís Lago, presidente da recém-fundada Associação das Vítimas do Maior Incêndio de Sempre em Portugal (AVMISP), a matriz não foi replicada totalmente, e as medidas de apoio que o Governo disponibilizou para os incêndios de Junho e de Outubro são discriminatórias, sobretudo no que diz respeito aos apoios às empresas. E por isso está a ponderar avançar com uma acção judicial contra o Estado, que ainda não avançou porque a associação está a levar, primeiro, todos os seus argumentos aos grupos parlamentares para os sensibilizar para uma situação que, acusa, “discrimina os portugueses”.

No caso das empresas afectadas pelos incêndios de Junho, poder-se-ão candidatar ao concurso lançado no âmbito do Programa Operacional do Centro de Portugal 2020 em 24 de Julho (e que vai estar aberto até 31 de Janeiro de 2018). Este anúncio tem uma dotação de 25 milhões de euros e prevê financiar 85% dos projectos apresentados a fundo perdido. Nas empresas afectadas pelos incêndios de Outubro, a comparticipação a 85% só é dada aos primeiros 200 mil euros; acima deste prejuízo, os apoios serão de 70%, no caso de ser uma PME, ou apenas 25% se não for uma PME.

A razão destas diferenças é rapidamente explicada por Ana Abrunhosa: “Em Junho foi possível fazer uma reprogramação do PO Centro e conseguir esse reforço de verba de 25 milhões de euros. No caso dos incêndios de Outubro, vamos usar os concursos e as metodologias dos Sistemas de Incentivos, mas o dinheiro vem do Orçamento do Estado.” Esta linha de financiamento é de 100 milhões de euros e, de acordo com o Ministério do Planeamento e Infra-estruturas (MPI), tinham sido admitidas até ao início de Novembro 38 candidaturas, das quais 28 já se encontram aprovadas, e envolviam o apoio a um investimento elegível de 7,4 milhões de euros. As outras dez candidaturas ainda estavam em análise e representavam um investimento de 16,7 milhões de euros. Em concreto e pelo fluxo de tesouraria entre as empresas e CCDR-C já passou um montante global de 627 mil euros.

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No caso das empresas que já pediram apoio após os incêndios de Outubro, o MPI contabilizou a recepção de 39 candidaturas na região Centro, com um investimento previsto de 17,6 milhões de euros, e uma candidatura na região Norte de 100 mil euros. Relativamente às candidaturas já aprovadas até ao início de Dezembro, o MPI contabiliza 11 candidaturas, todas elas na região Centro, que implicam um investimento de 2,1 milhões de euros e um apoio público de 1,6 milhões de euros.

Cláudio Guerra, gerente da empresa J. Guerra, uma fábrica de Sirgaria e Passamanarias com 55 funcionários, os apoios que o Estado oferece não são suficientes. Com 60 anos de história e um vasto rol de clientes — era aqui que os museus e hotéis de luxo encomendavam fitas tecidas, franjas, embraces, cordões e galões, e onde também a artista plástica Joana Vasconcelos se abastecia de material para as suas criações —, a J. Guerra estava instalada na zona industrial de Oliveira do Hospital há 25 anos. O incêndio destruiu por completo todas as máquinas e instalações. “Ainda não terminámos o levantamento de prejuízos, mas pelas nossas estimativas devemos chegar aos 15 milhões. Há, porém, coisas que nenhuma indemnização pode pagar, nomeadamente as máquinas antigas que já não se fabricam. Nada disso é recuperável”, explica.

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“O drama calhou-nos agora a nós. Mas fica o aviso que, no próximo incêndio, o Estado já só vai ajudar em 50 ou 60% do prejuízo” critica Cláudio Guerra, gerente da empresa J. Guerra (com o irmão)

O gestor está inconformado com a diferença de tratamento que está a ser dada às empresas afectadas em Junho e em Outubro. “O drama calhou-nos agora a nós. Mas fica o aviso que, no próximo incêndio, o Estado já só vai ajudar em 50 ou 60% do prejuízo. Não é aceitável. Não há portugueses, nem empresários, de primeira e de segunda categorias”, critica. Cláudio e o irmão, a segunda geração à frente da empresa, estão a tratar de arranjar uma solução provisória que lhes permita ir dando resposta imediata aos clientes — “felizmente, tivemos logo os nossos concorrentes, que nós vemos como parceiros, a dizer que nos punham aqui máquinas no dia a seguir, só tínhamos de arranjar um espaço”.

Cláudio vai avançar com a solução provisória para continuar a cumprir com os clientes, mas o objectivo é reconstruir a fábrica, no mesmo sítio. Vai demorar “uns bons dois anos”. “Só para demolir, vão ser precisos dois meses. Depois, meio ano ou mais para reconstruir.” Para já, Cláudio não sabe, sequer, quando começará a demolição, uma vez que os peritos ainda não fizeram o levantamento de tudo. “Só passado um mês do incêndio é que começaram a sair as leis. Agora ainda precisamos de as analisar. E também estamos a ponderar se não processamos o Estado por esta discriminação”, conclui.

Nélson de Souza, o secretário de Estado do Desenvolvimento e Coesão, foi a Castelo de Paiva sossegar os empresários, para lhes dizer que achava que os 200 milhões de euros que tinham conseguido alocar em duas linhas de financiamento para atrair e repor o investimento empresarial seriam suficientes para acudir a todos os prejuízos. Disse-o na mesma cerimónia em que Pedro Marques, com a pasta do Planeamento, disse ser “um bom dia para ser ministro de Portugal”. Porque mostrava como “com trabalho e dedicação” e alguma “criatividade” é possível resolver os problemas: e no caso em concreto, conjugando as duas linhas de financiamento já mencionadas, impedir que fechasse a fábrica de calçado de Castelo de Paiva que ardeu por completo e cujos 96 trabalhadores receberam uma carta de despedimento dois dias depois. A fábrica vai ser reconstruída, agora nas mãos de um novo investidor, que vai aproveitar o financiamento a fundo perdido para reabrir a fábrica e, sobretudo, para não perder a mão-de-obra qualificada que ali existe.

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Renascer das cinzas

Paulo Rogério já não tem forças para ser criativo e diz que tem ainda mais razões para falar da discriminação. Dono de uma queijaria tradicional em Oliveira do Hospital, assistiu, impotente, à voracidade das chamas a incinerar o seu ganha-pão: tem 150 animais, perdeu automaticamente 100 no incêndio e depois outros 20, que tiveram de ser abatidos por causa das queimaduras. Ficou com 30 borregos jovens. Para o Natal, a época do ano em que o queijo da Serra tem mais procura, a produção ficou perdida. Paulo Rogério quer recuperar para a Páscoa e para o Verão.

“Costumo dizer que já nasci debaixo de uma ovelha, sempre fiz isto. Mas, depois do que aqui passámos, pensei se devia continuar. Tive as malas feitas para emigrar”, admite. Paulo tinha passado duas noites sem dormir, a velar a morte do pai. Diz que passou a noite de 15 de Outubro em claro a tentar evitar o inevitável, até lhe falhar a água, a luz, as forças. Resistiu até o fogo se cansar. Depois, pensou em desistir.

O que o fez ficar? “Um amigo que me organizou um jantar solidário que me permitiu comprar 40 animais em Tondela e 20 em Celorico. Eu tinha comprado dez em Arganil, pude recomeçar. Estive 36 dias parado, agora já estou a trabalhar, a produzir queijo e requeijão. Mas ainda só faço entregas em Oliveira do Hospital, dia sim, dia não. Porque tenho pouca produção. Por esta altura, estava a entregar 80 queijos. Agora estou a entregar seis”, relata.

Paulo Rogério, dono de uma queijaria tradicional em Oliveira do Hospital, tinha 150 animais: 100 morreram no incêndio e depois outros 20, que tiveram de ser abatidos por causa das queimaduras Paulo Pimenta
Para o Natal, a época do ano em que o queijo da Serra tem mais procura, a produção ficou perdida Paulo Pimenta
Um amigo organizou-lhe um jantar solidário: conseguiu comprar 70 animais Paulo Pimenta
"Estive 36 dias parado, agora já estou a trabalhar, a produzir queijo e requeijão. Mas ainda só faço entregas em Oliveira do Hospital, dia sim, dia não" Paulo Pimenta
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Paulo Rogério, dono de uma queijaria tradicional em Oliveira do Hospital, tinha 150 animais: 100 morreram no incêndio e depois outros 20, que tiveram de ser abatidos por causa das queimaduras Paulo Pimenta

O pastor chama “amigo” a alguém que não conhecia de lado nenhum, “mas que fez mais do que o Estado”. “As políticas para a agricultura deixam muito a desejar, a agricultura é o parente pobre e continua a ser. O Governo e os outros partidos não vêem a agricultura como sendo um pilar do país. Senão como é que explicam que dêem apoios de 85% às empresas até 200 mil euros e na agricultura esses apoios só vão para os primeiros 50 mil euros? A partir de 50 mil e até 400 mil euros os apoios são só de 50%. Acho que os nossos governantes não querem a agricultura no nosso país”, diz.

Paulo Rogério fez os cálculos a quanto precisa para reerguer tudo o que perdeu e manter a produção da sua queijaria ao nível que estava antes de 15 de Outubro: 190 mil euros. “A época de seca foi muito prolongada. Eu já gastei aquilo que tinha e não tinha para manter os animais bons, bem alimentados, e começar a época de Inverno em força. Com estas medidas de apoio, tenho de pensar duas vezes. Não consigo arranjar 90 mil euros. Não consigo”, lamenta.

Mas, depois de ter chorado muito, decidiu que vai continuar. Sem esperar nada do Estado e a contar com a solidariedade dos que vai conhecendo. “Agora é renascer das cinzas com o apoio de alguns amigos. Acho que vou conseguir. A prova disso são estes borreguinhos que estão agora a nascer [nasceram três no dia em que o P2 passou por Oliveira do Hospital]. As mães estão agora a dar leite para alimentar os filhos. Mas ainda este ano vão dar leite para o fabrico de queijo.”

É a pensar em casos destes que o presidente da Câmara de Oliveira do Hospital, o socialista José Carlos Alexandrino, tem sido tão crítico à falta de apoios específicos para o sector da agropecuária, lembrando o papel tão importante que os pastores têm também na ocupação destes territórios e na sua manutenção e limpeza. Alexandrino tem pedido reforço de verbas no Orçamento do Estado para apoiar este sector, sob pena de haver um abandono da actividade.

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Foi em abandono que Inês Moura pensou quando viu a sua casa arder completamente, no lugar de Monte Frio, em Arganil. Tinha uma casa de madeira, que construiu com as próprias mãos, em conjunto com o companheiro e alguns amigos. Temeu que o sentimento de comunidade que a fez sair do Porto e de uma vida urbana dita “normal” para viver em contacto com a natureza se perdesse perante a enormidade dos estragos, não só nas casas de cada um, mas na natureza que os atraiu ao vale da Benfeita e do Monte Frio.

“Foram 40 famílias que ficaram sem casa nesta região. São 150 adultos e cerca de 50 crianças. Algumas destas famílias, a maior parte são estrangeiras, estão cá há 15 anos. Temi que se fossem embora perante esta devastação... Felizmente, escolheram ficar”, conta Inês, ela própria com dois filhos, uma menina de cinco anos e um bebé de 20 meses, acrescentando que dificilmente iria desistir de “viver o sonho”. 

Vive numa casa que lhe foi emprestada por uma inglesa até ao Verão. O sentimento de comunidade volta a estar bem visível e todas as famílias se apoiam na reconstrução. Uma parte destas casas e abrigos não está, sequer, inventariada nos cadernos municipais, e as vítimas organizaram-se em crowdfunding internacionais, para angariar fundos para a reconstrução.

Inês Moura quis, também, sublinhar o empenho e a dedicação que encontrou na SOS Arganil, uma associação criada no dia seguinte aos incêndios e que rapidamente assumiu a complexa gestão de organizar os donativos e o trabalho dos voluntários que praticamente todas as semanas se disponibilizam, vindos quase sempre de Lisboa e arredores, para “ajudar no que for preciso”.

Foi na SOS Arganil que Inês foi buscar quase tudo o que precisava — “custou perder alguns objectos mais emocionais, como o Livro do Bebé que andei a preparar para cada um deles; de resto, os objectos do dia-a-dia foram automaticamente repostos. O desafio foi convencer a minha filha de que não precisa agora de começar a acumular brinquedos e bonecas. Só vamos buscar aquilo que de facto precisamos. É essa a nossa filosofia de vida”, conclui.

A família de Inês planeia começar a construir a ruína de pedra que existe no terreno que comprou — “a casa de madeira sempre foi provisória, reconstruir a ruína era o nosso objectivo”, explica, e no último feriado de 8 de Dezembro contou com vários braços na ajuda.

A SOS Arganil recebeu três dezenas de voluntários, distribuiu-os por quatro equipas e enviou uma delas para ajudar esta família. Houve acções de reconstrução, de remoção de escombros, de limpeza e reparação de linhas de água. Sofia Garção, gestora, residente em Lisboa, levantou-se de madrugada, com os filhos de 13, 11 e 6 anos, para estar em Arganil às 9h00 do dia 8 de Dezembro e participar na limpeza de uma linha de água e em acções de estabilização do solo em Barril de Alva. “Por entender que é importante ajudar. E é importante mostrar aos meus filhos que estas coisas podem acontecer a qualquer um e que temos de estar sempre disponíveis para ajudar os outros.” 

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Centro de recolha de donativos em Tábua

O melhor e o pior dos homens

Em conjunto com Rodrigo Oliveira, o coordenador da associação, Sara Andrés é um dos rostos mais dinâmicos da SOS Arganil. Ultimamente tem ocupado os seus dias para, em conjunto com a mãe, tentar organizar os muitos donativos que continuam a chegar às instalações que a Junta de Freguesia da Coja cedeu à associação, onde ficava a antiga empresa cerâmica A Carriça. A tarefa é hercúlea e parece interminável. “O desafio é garantir que as pessoas que mais precisam são de facto atendidas. Creio que é também isso que quem enviou bens espera e merece”, explica.

Sara não esmorece. Rodrigo, designer de profissão, também não. E agora nem conseguem imaginar quando é que darão por findo o trabalho que têm pela frente. No gigantesco armazém estão bens doados, organizados e por organizar, mobiliário por escolher e mobiliário já escolhido e catalogado, à espera que fiquem prontas as casas dos seus novos donos. “Parece que há sempre mais alguma coisa para fazer e há sempre alguém a ajudar e alguém a querer oferecer ajuda. Não sabemos quando vai terminar“, diz Rodrigo. Sara não está, ainda, preocupada com isso. Diz que tem crescido e aprendido muito. “Chegam-nos relatos de abusos, de pessoas que se aproveitam desta onda de solidariedade. Mas, felizmente, não são a maioria. Aqui também estamos a crescer e a enriquecer como pessoas. Da comunidade de Benfeita, por exemplo, muitas famílias que até desconhecíamos que viviam na região, têm dado grandes lições nesse apego à natureza e à sua preservação e no desprendimento dos bens materiais”, argumenta Sara Andrés.

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Em Oliveira de Frades é a associação Médicos do Mundo que está a coordenar voluntários e a organizar donativos. Voluntários no dia em que levaram a Zeferino, cuja casa ardeu por completo, um sofá

Em Oliveira de Frades, é a associação Médicos do Mundo que está a assumir essa função, de coordenar voluntários e organizar donativos. E é Francisca Onofre, licenciada em Educação Especial e com missões de voluntariado no Brasil e em Cabo Verde, que largou o emprego num colégio para assumir esta actividade que traz tantos desafios. A começar pelas questões logísticas: desde o mobiliário que é preciso catalogar e medir às toneladas de roupa enviadas, havendo uma grande quantidade “que não serve a nada nem a ninguém. Tem de ir directamente para o lixo”, admite. Esse é o trabalho menos gratificante. Mas depois há todos os outros, como ter a certeza de que se arrancam sorrisos genuínos a pessoas como Zeferino Estêvão, um viúvo que perdeu a casa nos incêndios de Outubro e que está a viver numa casa que lhe foi emprestada no centro da vila de Oliveira de Frades.

Nesse dia de Dezembro em que o P2 esteve em Oliveira de Frades, uma das missões dos voluntários da Médicos do Mundo era levar a Zeferino um sofá para a sala, para que pudesse acolher a irmã quando esta o visita. “Eu não tinha uma casa. Tinha um casarão, com capela e tudo! Ardeu tudo, até as pobres galinhas e a criação de coelhos. Vamos ver quando é que consigo para lá voltar”, afirma. Zeferino nunca esquece o mais importante: “Sobrevivi e fiquei para contar. Tenho de aproveitar essa dádiva.” Diz que vai todos os dias a casa, para ver a ruína onde foi tão feliz com a mulher, desde que regressaram de Moçambique. E não desiste de a ver de pé, de novo. “A câmara diz que isso vai acontecer. E eu vou esperar. Estou nas mãos desta gente”, encolhe os ombros. Não sabe quando acontecerá. “Terei paciência.”

Enquanto a ajuda oficial não chega aos territórios afectados, são os movimentos de solidariedade que mais têm contribuído para levar apoios às vítimas. Se em Junho foram os donativos em dinheiro que foi preciso gerir — com as complicações e a inoperância que o Fundo Revita revelou —, em Outubro o que mais se viram foram os donativos em espécie, com os doadores a querer entregar em mãos aquilo de que as pessoas mais precisam.

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O Movimento Esposende com Pedrógão no Coração já enviou duas dezenas de camiões TIR com todo o tipo de bens para as regiões do Pinhal Interior e da Beira Alta

Sílvia Cruz, dinamizadora do Movimento Esposende com Pedrógão no Coração é o melhor desses exemplos. Visitou as aldeias de Pedrógão 15 dias depois dos incêndios de Junho, levando numa carrinha os donativos que recolheu entre amigos. “Fiquei muito sensibilizada com o abandono a que estavam votadas aquelas pessoas, quase todos idosos, muito isolados. Não me sai da cabeça a Dona Angelina, com mais de 80 anos, que ficou feliz só porque viu uma garrafa de água e alguns vegetais”, relata esta socióloga que acabou por, nos últimos seis meses, ser uma espécie de cicerone de um incansável grupo de meia centena de voluntários que já enviou duas dezenas de camiões TIR com todo o tipo de bens para as regiões do Pinhal Interior e da Beira Alta.

A primeira missão foi a 30 de Outubro: saiu de Esposende um comboio de camiões, com 14 TIR de donativos chegados até da Córsega. No dia 8 de Dezembro, uma nova incursão, com mais 12 camiões TIR e quatro carrinhas. Levaram um camião cheio de animais vivos,  três mil oliveiras, material de construção para duas casas completas, ração para animais, electrodomésticos, mobílias, brinquedos, bolos-reis e pão-de-ló.

“Andamos a bater de porta a porta, junto das empresas, a angariar donativos. Em alguns casos, sabíamos do que as pessoas precisavam, tratávamos de recolher. O que nos move é a empatia e o espírito de solidariedade. Hoje são eles, amanhã podemos ser nós”, explica Sílvia Cruz.

Quem tem estado a apoiar o grupo Movimento Esposende com Pedrógão no Coração, que não mudou de nome mesmo depois de se ter expandido para a Beira Alta, a identificar as necessidades da população nesta região é o Movimento Associativo de Apoio às Vítimas de Midões (Maavim).

Localizado numa das instalações do grupo Tavfer, do empresário Fernando Tavares Pereira, o MAAVIM é uma espécie de quartel-general de todas as operações. O próprio Fernando Tavares Pereira, candidato derrotado à Câmara de Tábua, e que tem por sua conta cerca de 700 funcionários em cinco países, foi uma vítima dos incêndios. Contabiliza prejuízos de cerca de 15 milhões de euros — isto num grupo que factura por ano cerca de 48 milhões, em áreas como a metalomecânica, construção civil, inspecção automóvel, agricultura, saúde, turismo e hotelaria. Arderam-lhe olival, vinha, várias casas — uma delas, um solar no centro da vila de Midões, para o qual aguardava aprovação para um projecto de turismo. Mas desde Outubro que os negócios ficaram para segundo plano e a prioridade tem sido organizar donativos. E angariar verbas para cabazes solidários. Por estes dias, anda a organizar a entrega de 400 cabazes de Natal: “Eu dou o azeite, as batatas, o vinho e as couves. E ando a pedir ajuda para arranjar dinheiro para comprar o bacalhau. Está quase.”

Rosa Maria Rodrigues é uma dessas vítimas a viver da generosidade alheia, em Midões. “Só tenho a agradecer às pessoas que nos enviam ajuda de todo o lado. Há muita gente má, e invejosa, gente que me critica só porque não pego em tudo o que me deixam à porta. Chamam-me pobre e mal agradecida. Mas eu sempre tive que chegasse para mim e para os meus filhos. E ainda dava. Esta situação é nova para mim. Nova e difícil. A coisa boa é que percebi que também há gente boa, que ajuda quem não conhece. Estou por isso muito agradecida”, explica.

“Tínhamos tudo. Agora ficámos sem nada”, diz o marido de Rosa, António Bernardino. O grupo Esposende com Pedrógão no Coração levou-lhe material de construção para reconstruir a casa e um enxoval completo para a bebé Serena, a neta mais nova dos Bernardino, que conta agora com dois meses de vida. “É nos meus filhos e nos meus netos que eu penso, para poder olhar para a frente”, diz Rosa. Os seus olhos, marejados, revelam que na verdade o que lhe apetece mesmo é chorar. Chorar muito.

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Aldeias resilientes

Conformação. Resignação. Mas também desespero. E revolta. É nas alturas da tragédia que as pessoas se definem. E Nádia Piazza, quando descobriu que o filho de cinco anos tinha morrido daquela forma estúpida, nos braços do pai, na estrada que estava cortada por um pinheiro, Nádia escolheu definir-se como uma lutadora. “Tinha duas opções. Fazer as malas e ir embora. Ficar e lutar. Escolhi ficar e lutar. E procurar saber a verdade para impedir que possa um dia voltar a acontecer com quem quer que seja”, afirma. 

Por isso, a revolta que sentiu quatro meses depois daquele fim-de-semana de Junho foi ainda maior. “Se em Pedrógão parece óbvio que existiu incompetência do Estado, em Outubro só pode ter havido má-fé. É incompreensível que se tenham cometido os mesmos erros [nas questões de meios de combate e respectiva coordenação]”, acusa a presidente da AVIPG.

O que aconteceu em Pedrógão ainda não está completamente apurado, mas já há várias pistas e relatórios com conclusões. Nomeadamente, o da Comissão Técnica Independente, liderada por João Guerreiro, que apontou para a possibilidade de ter havido curto-circuito em postes da EDP na origem da ignição e demonstrou que foi a existência de um pinheiro derrubado na estrada que impediu a passagem das viaturas que acabaram calcinadas, juntamente com os seus ocupantes. A via judicial para apurar responsabilidades criminais também já está em curso e já fez os primeiros dois arguidos, indiciados pelos crimes de homicídio por negligência e ofensas corporais: Augusto Arnaut, comandante dos bombeiros de Pedrógão, e Mário Cerol, segundo comandante distrital de Leiria.

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Como se não bastasse o desafio de enfrentar o vazio da destruição, os moradores nestas aldeias mais ou menos isoladas enfrentam também o pânico de que tudo possa, um dia, voltar a acontecer. As alterações climatéricas são uma realidade, o fogo começou a vir com intensidade que nunca tinha sido vista antes, os bombeiros não chegam a todas as solicitações.

“Independentemente de haver Estado para nos socorrer ou não, a verdade é que temos de voltar à organização inicial no combate aos fogos. Nós, sociedade civil, temos de nos bastar até chegar uma resposta institucional”, simplifica Nádia Piazza, dizendo que essa é a única conclusão que qualquer cidadão pode tirar. “Nós temos a quinta maior mancha contínua de eucalipto no mundo. Só perdemos para países com outra dimensão, como a China, a Índia, a Austrália ou o Brasil. Com a agravante de que em Portugal o período de calor é também o período seco, enquanto nesses países o calor é acompanhado de chuva, quase sempre”, recorda a presidente da associação, formada em Direito Público e que está em Portugal há 17 anos e no interior há 12.

O professor Domingos Xavier Viegas, especialista em Incêndios Florestais da Universidade de Coimbra, a quem o Governo pediu um relatório a analisar a tragédia, diz que o sistema nacional de defesa da floresta está assente em três pilares: a Protecção Civil, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (Sepna) da GNR. Mas falta o quarto pilar, que é o da sociedade civil, a população, que não tem qualquer tipo de informação sobre o que deve fazer e como se deve proteger. 

“É preciso ser-se muito estúpido para não perceber que numa zona com estas características o combate é impossível? E para não reparar que nesta mancha de eucaliptos há estrelinhas que se chamam aldeias, onde ainda existem pessoas? É preciso salvá-las. Vamos ficar à espera de que o Estado nos venha dar alguma coisa? Formação? Não. Vamos avançar nós”, explica Nádia Piazza.

A sede da Associação das Vítimas de Pedrógão Grande vai ser instalada na antiga escola primária da Figueira, numa recuperação financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian, e vai ser também sede das muitas iniciativas que a associação já tem em curso. Uma delas é Aldeias Resilientes, um projecto-piloto que passa pelo levantamento das populações que residem nas aldeias (geo-referenciar as habitações permanentes, as sazonais, as pessoas aptas a constituir uma equipa e a participar activamente nos esforços de autoprotecção, pessoas com deficiências ou mobilidade reduzida) e também os eventuais mecanismos de combate existentes e necessários. O projecto envolve já 25 aldeias.

“Às vezes, não é preciso comprar nada, é só preciso saber onde se encontra uma boca de incêndio ou um tanque, ou até uma máquina de arrasto”, explica Nádia. Resume: “Nós queremos continuar a ver as aldeias habitadas. E ter a certeza de que a população sabe o que tem de fazer em caso de perigo”, sintetiza a presidente da associação, admitindo que são estes projectos que lhe dão fôlego, enquanto há outras preocupações a tirarem-lhe a energia. “Posso estar a cruzar-me, diariamente, com pessoas que possam ter tido algum grau de responsabilidade no que aconteceu. E isso é difícil de imaginar. Mas temos de ir até ao fim”, termina. 

Ir até ao fim significa deixar passar um dia de cada vez. Tendo na ideia o objectivo de impedir que o interior fique ainda mais desertificado, a Associação Aldeias de Montanha, que representa 41 aldeias de nove municípios na região da serra da Estrela, está a pensar não apenas no Natal, mas também no futuro. Sendo um destino turístico que viveu sempre da Natureza, e da sua exuberância, terá, nos próximos tempos, de se focar mais nas suas tradições culturais e na resiliência desta gente. A aldeia de Folgosinho, uma das jóias da coroa, saiu preservada, mas tudo à sua volta ardeu. “Ficaram as pessoas e as suas tradições, e a sua resiliência. O nosso calendário de actividades de 2018 irá estar muito focado na divulgação do destino através deste ponto de vista cultural”, diz Célia Gonçalves, a representar essa associação. Ardeu muita coisa (por exemplo, todos os circuitos cicláveis), mas a maior parte da rede de caminhos de aldeia é recuperável — 140 dos 160 quilómetros da rede permanecem em bom estado.

Francisco Freire tem apenas 24 anos e passou o último mês de Setembro com o avô José, na aldeia de Coucedeira, em Seia, a ajudá-lo a fazer aguardente. É, de entre os netos de José Nunes Freire e Prazeres da Silva, aquele que mais gostava de frequentar a aldeia. A família habituou-se a passar ali o Verão e todas as férias. Coucedeira é uma aldeia-presépio, daquelas encaixadas nas encostas da serra. O núcleo central, com 15 casas, ardeu completamente — entre elas, a casa de José e Prazeres, onde Francisco gostava de vir passar as férias. Mas, das 15 casas, apenas duas são de habitação permanente. As outras dificilmente serão reconstruídas a expensas próprias. O avô, com 84 anos, e por enquanto a viver de favor na casa de um primo, só quer ver a casa recomposta. Ir para Lisboa viver com os filhos continua fora de questão. Ele é o aldeão resiliente. Mas a aldeia sobreviverá? Francisco resigna-se: “Tudo vai ser diferente.” Este ano, o Natal terá de ser em São Domingos de Rana. O futuro? “Logo se vê.” 

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