O ano da revolução feminina

Os debates mais mobilizadores em 2017, e não apenas no ecossistema digital, tiveram quase sempre questões identitárias no seu centro. De entre todos, a violência sexual sobre as mulheres foi talvez o mais omnipresente.

Os debates mais mobilizadores em 2017, e não apenas no ecossistema digital, tiveram quase sempre questões identitárias no seu centro. De entre todos, a violência sexual sobre as mulheres foi talvez o mais omnipresente. De tal forma que não será exagero falar-se de uma transformação em curso ou de um novo panorama na história da igualdade de género, com a maneira como as relações entre sexos foram reguladas no tempo a serem postas em causa.

Uma das novidades é que essa dinâmica de protesto deixou de ser impulsionada pela matriz minoritária LGBT, para ser apropriada por uma maioria de mulheres. Aquilo que tem sido exposto, a exploração sexual das mulheres, era nomeado em surdina, mas raramente enunciado de forma evidente. Como referia recentemente o filósofo Slavoj Zizek, estamos a ser confrontados com uma realidade opressiva que, de forma mecânica, tendemos a associar mais a países muçulmanos do que em relação ao que se passa aqui ao nosso lado.

Como acontece quase sempre nestes momentos de instabilidade, vislumbram-se excessos, injustiças, perversões ou comportamentos que são colocados injustamente ao nível da violência sexual mais explícita. Esses desvios não devem ser relativizados e são criticáveis, mas também é importante que não nos desliguem do essencial. E o que está a suceder poderá ser muito relevante, não apenas na relação entre mulheres e homens, se forem cumpridas algumas condições.

Entre elas assumir-se que não estamos perante meros comportamentos individualizados, mas perante expressões das estruturas de poder masculinas predominantes. Da mesma forma, é necessário que as manifestações vindas a público não se circunscrevam a algumas elites com visibilidade, e se expandam para as vidas quotidianas comuns mais invisíveis. Por outro lado, é também necessário que a lógica responsável da emancipação feminina suplante a tentação tantas vezes fácil e irresponsável da vitimização.

E é também preciso que se consiga destrinçar o que são jogos de sedução de jogos de poder, talvez começando por assumir que, por vezes, estão mais conectados com a sexualidade do que tendemos a admitir. De contrário, tender-se-á a querer santificar a sexualidade.

Por último, é necessário que este despertar não seja dissociado das lutas económicas ou políticas em andamento. E é preciso ter noção de que, por vezes, é isso que acontece quando as grandes questões comuns são esquecidas. Ou quando se desiste de pensar narrativas inclusivas capazes de fazer coexistir no mesmo plano as insuficiências da democracia, as questões ecológicas, as lutas classicistas ou as políticas identitárias. Por outras palavras: é preciso que a fixação na diversidade não produza mentes progressistas, mas desligadas das questões alheias ao seu chamado grupo de referência.

Os diferentes movimentos identitários (de género, raciais ou de identidades sexuais) foram fundamentais na construção do espaço democrático, mas por vezes também podem funcionar como força de fragmentação do mesmo. A visibilidade de cada tipo de identidade é selectiva. Depende da capacidade desse grupo em obter legitimidade na esfera pública. Mas o resultado pode ser uma forma paradoxal de exclusão. A luz sobre uns pode resultar na sombra de outros.

Falou-se muito nisso na ressaca das últimas eleições americanas, com várias vozes a argumentarem que Hillary Clinton havia cometido o erro de, em cada momento, citar mulheres, afro-americanos, latinos ou LGBT, produzindo uma legião de excluídos: os não-citados. Pelo contrário, Barack Obama soube contornar a exclusão (“não existe América negra ou América branca, mas Estados Unidos da América”), evitando que o conflito cultural tomasse de assalto o espaço público e transpusesse os limites da política. No fim de contas, apostou no diálogo e no primado da política sobre as diferenças identitárias.

Ou seja, para que a energia que eclodiu este ano em torno das lutas femininas não seja desperdiçada ou engolida por um sistema que sabe apropriar-se, assimilar ou neutralizar com facilidade tudo o que se lhe opõe, é necessário ter em atenção os obstáculos e as particularidades da dinâmica encetada. E em simultâneo não pode fazer-nos esquecer aquelas que são as grandes questões comuns que atravessam o nosso tempo no sentido da transformação do mundo. 

Esta Crónica encontra-se publicada no P2, caderno de domingo do PÚBLICO

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