Um conto de Natal na cidade que é um conto de fadas

Com um dos melhores mercados natalícios da Europa, Colmar, no coração da Alsácia, é um postal de casas com fachadas de tantas cores. Bairros como a encantadora Petite Venise são admirados nesta época do ano tanto por adultos como por crianças.

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Sousa Ribeiro

O postal chegou no início do Verão. Recordo-me bem.

Eu não sabia ler. Ainda não sabia ler. Mas o postal era bonito, tinha casas de cores múltiplas, atravessadas com traves de madeira enegrecida, reflectindo-se no espelho das águas. Eu já havia recebido alguns outros, de tantas cidades, mas aquele ficou-me gravado e encarregar-se-ia de exacerbar, um pouco mais tarde, quando traçava itinerários por toda a Europa, com um velho mapa em cima da mesa, a minha vontade de viajar, de seguir os passos de alguém que tanto estimava mas cuja existência o impedia de me ver por longos períodos.

O postal chegava de Colmar.

Era nele que pensava quando, mal o crepúsculo começou a baixar, inundando a cidade de sombras, escutava as palavras de Emmanuel Fromm, responsável pela promoção do turismo de Colmar.

- Há 180 barraquinhas à espera dos visitantes nos cinco mercados espalhados ao longo da parte antiga. O facto de toda a cidade se juntar durante seis semanas tem muito a ver com a atmosfera hospitaleira tão característica da magia do Natal em Colmar.

Por vezes olhava através da moldura da janela, numa espera ansiosa, para que as luzes iluminassem a cidade que me parecera saída de um conto de fadas.

- A despeito de a iluminação pretender, na sua essência, embelezar e valorizar os edifícios históricos à noite, na verdade também é uma ajuda para conduzir o fluxo de visitantes. Por isso, em cada esquina, a atenção dos turistas é atraída por um holofote que os encoraja a passear e a comprar.

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A noite tombava sobre Colmar, finalmente — e como eu apreciava as trevas, mesmo que por instantes, antes do espectáculo de luz e dos sons festivos que já se anunciavam.

- A atmosfera especial resulta da sinergia entre a alma de uma cidade que cultiva um sentimento de boas-vindas e o saber, o know-how. Não se pode hipotecar a importância dos trabalhadores que transformam a magia do Natal num evento no qual Colmar, juntamente com o posto de turismo local, investe um total de 900 mil euros, em decorações e luzes de Natal, para dar as boas-vindas e guiar, durante cinco semanas, entre um milhão e um milhão e meio de visitantes, com a particularidade de termos, este ano, um novo ponto de interesse, muito próximo da catedral, com um carrossel e decorações, assegura ainda Emmanuel Fromm.

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Este ano, o Natal foi transportado para as ruas de Colmar logo no dia 24 de Novembro e prolonga-se até 30 de Dezembro, com um total de cinco mercados nesta cidade situada aos pés das montanhas Vosges e no verdadeiro coração da Alsácia. Viver e sentir Colmar nesta altura do ano, mesmo que o frio convide mais a sentar-me em frente de uma lareira, é uma experiência enriquecedora, tão repleta de sentimentos, tão nostálgica, que facilmente me conduz para os meus tempos de infância, para esse espírito que, no caso de Colmar, funciona como um milagre, o milagre de despertar emoções que são ignoradas por uma existência materialista.

Por vezes, caminhando, tão entregue à minha solidão, lembrava-me do postal, daquelas cores que o tempo foi diluindo, como uma casa necessitando de uma pintura para não parecer tão triste, enquanto um odor estranho se entranhava nele, pungente como o vinho cujo aroma paira no ar por estes dias em Colmar.

Passeio-me pela Place des Dominicains, pela Place Jeanne d’ Arc, pela Place de l’ Ancienne Douane, também conhecida por Koifhuis, pelo seu mercado interior, e pela Petite Venise, a pequena Veneza onde as crianças (que entoam cânticos de Natal nos barcos) são grandes em alegria, em emoções — são estes os cinco lugares onde o Natal expressa toda a sua força em Colmar, abrindo um espaço para todos os gostos, uma vez mais materialista, outras mais conservador, outras ainda mais apelativo para o sentimento dos mais pequenos, enquanto os adultos recuperam uma memória que lhes lembra um passado cada vez mais distante. 

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Com um horário de encerramento entre as 19h e as 20h horas (este último de sexta a domingo), por motivos de segurança, cada mercado é uma aldeia em miniatura, com o seu cheiro a laranja e a canela, com os seus artesãos, espaços apaixonantes e calorosos que revelam uma arquitectura íntima e autêntica, tão à imagem da própria cidade. Não importa onde inicio a minha errância, mas opto pela Place des Dominicains antes de permitir que os meus passos se percam pelo labirinto de ruas com as suas casas banhadas de luz, com essas traves de madeira tão características de Colmar e da Alsácia, de onde são provenientes muitos dos 180 expositores que enchem a cidade de vida quando mais um ano caminha para a meta com a rapidez de um sprinter na recta final. Uns e outros, sem excepção, foram escolhidos pela qualidade e interesse dos seus produtos, pela paixão que colocam naquilo que fazem e que parece ganhar maior expressão quando, confrontados com a curiosidade de uma criança, os artesãos, com um sorriso no rosto, procuram transmitir o seu saber, herdado de geração em geração, numa tradição que se perpetua e na maior parte das vezes desconhecida dos miúdos que, com os seus gorros de lã, caminham de mão dada com os pais, numa viagem até um tempo tão diferente do tempo vivido no dia-a-dia.

Ninguém, por mais indiferente que seja à quadra natalícia, resiste a pousar um olhar demorado no rosto de uma criança magnetizada pelo encanto que nela produz a visão da árvore de Natal, pelo prazer de provar um pequeno biscoito, o famoso bredele — sim, é verdade, o mercado de Natal de Colmar, como tantos outros espalhados pela Europa, também é um negócio mas cada especialidade local, cada criação, cada objecto decorativo, quase todos eles inspirados pela atmosfera de Inverno, parece ter uma história para contar numa cidade que conhece, neste período do ano, uma excitação que facilmente contagia quem a visita.

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Um admirável conjunto de actividades contribui para tornar único o Natal em Colmar, eleito o quarto melhor mercado em 2016 pela European Best Christmas Markets numa lista liderada por Zagreb, na Croácia: são organizadas visitas guiadas à parte antiga da cidade, são promovidas provas nas caves onde há séculos se produz vinho, um ringue de patinagem mostra como é precário o equilíbrio de crianças e adultos sobre o gelo, há exibições de brinquedos tradicionais, espectáculos e concertos de música — tudo, no seu conjunto, é um verdadeiro testemunho do envolvimento da cidade, dos seus habitantes e das diferentes associações para tornar especial o Natal na capital do département do Alto-Reno. 

Colmar — e a Alsácia — cultiva a imagem do país do Natal, uma época tão querida para o coração dos alsacianos, uma febre que se instala e que não baixa até que se esgotem os primeiros dias de Janeiro. Os seus habitantes tornam-se mais activos do que nunca, instalam-se diante dos fornos e preparam deliciosos bolos reservados exclusivamente para esta altura do ano, ao mesmo tempo que revelam todo o seu talento como decoradores, tanto de interiores das casas, como das ruas e das ruelas, um ambiente que tem tudo de familiar, de colectivo, como alguém que redescobre um prazer durante meses esquecido ou que simplesmente volta a partilhar com um amigo ou um vizinho um prato, uma especialidade que não comia há um ano.

A magia do Natal resplandece, como o sol num dia de Verão, na Petite Venise, onde as crianças vão depositando as suas cartas para o Pai Natal numa caixa de correio gigante. A todos o homem das barbas brancas promete responder e alguns deles, com um pouco de sorte, serão sorteados para receberem uma prenda.

É bom acreditar.

Por vezes, muitos anos mais tarde, pelo Natal, deitava um olhar ao postal com as suas casas atravessadas por traves de madeira que, vim a saber muito mais tarde, serviam de protecção em caso de terramoto. A minha memória guardara as palavras escritas no verso que mais me agradavam. “Colmar é uma cidade muito bonita. Ontem sonhei com o nosso filho.” Nessa altura, olhava a minha mãe, que me sorria com um sorriso benevolente. Mas não era Natal. À mesa faltava alguém. Em Colmar parece que não falta ninguém. O mundo mágico eterniza-se, distribui felicidade por todos, entre os mais pequenos e entre os adultos, agora regressados, como eu por vezes, a um tempo cada vez mais distante do qual eles e eu nos sentimos órfãos.

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Um festival de cores

A primeira impressão, mesmo passando um olhar fugaz pela arquitectura única da cidade, provoca um forte impacto no viandante, uma sensação que nunca se desmorona — pelo contrário, à medida que vou passeando por Colmar mais seduzido me sinto e mais dificuldade tenho em perceber como é ignorada por tantos turistas.

Em contraste com esta aparente ignorância, Colmar sempre foi, ao longo dos tempos, como uma criança que anda de colo em colo, disputada por alemães e franceses e, ainda que por um período curto, pelos suecos durante a Guerra dos 30 Anos. No fundo, uma flutuação da soberania que foi, durante muitos anos, a imagem de marca da Alsácia, parte dos Impérios Germânicos entre os séculos X e XVII, francesa (à excepção de Estrasburgo e Mulhouse, que mantiveram o estatuto de cidades independentes por mais algum tempo) com o Tratado de Munster, em 1648, novamente alemã entre 1871 e 1919 e, mais tarde, entre 1939 e 1944, para regressar às mãos dos franceses no final de cada conflito com todo o peso de uma herança cultural fortemente enraizada e que se manifesta na maneira de ser, de viver, na própria língua, nesse dialecto alsaciano com fortes entoações cantadas.

Ao olhar para Colmar e para a Alsácia de uma forma geral, recordo-me de uma anedota que um dia me contaram em Tirana sobre os habitantes de Gjirokastër, de um carácter tão somítico que olham a girafa como o seu animal preferido porque, tendo um pescoço tão grande, pode comer no quintal do vizinho. Também a Alemanha é uma espécie de girafa, um pequeno pedaço alemão em território francês. E assim é, de igual forma, com o mercado de Natal. Na encruzilhada das rotas marítimas e terrestres da Europa, toda a região se tornou rica em lendas da Alemanha e dos países do Norte. A própria tradição de decorar a árvore de Natal poderá ter as suas origens no Alto-Reno, de acordo com o livro de contas da cidade de Sélestat (próxima de Colmar), num texto que data de 1521 e que determina o pagamento de quatro xelins ao guarda florestal para vigiar as árvores a partir do dia de São Tomás. Verdade ou não, as origens do Mercado de Natal, cuja tradição remonta à Idade Média, encontram-se na Alemanha, onde começou por ser designado Niklausmarkt antes de ser rebaptizado Christkindelmärik, o mercado do Menino Jesus, a 22 de Dezembro de 1570, de forma a satisfazer os cristãos, tanto católicos como protestantes.

Nos dias de hoje, Colmar está envolta pela serenidade e o festival de cores, numa cidade tão pitoresca, é verdadeiramente hipnotizante, faz-me por vezes sentir uma sentinela imóvel, de olhos pregados nas fachadas das casas, com as suas tonalidades de azul, de laranja, de amarelo, de ocre, de pastel, de verde, um caleidoscópio de matizes a que se juntam, mal a Primavera desponta, flores de tantas outras cores que se debruçam das suas janelas e das suas varandas, também decoradas, aqui e acolá, com ninhos de cegonhas em diferentes materiais — a cegonha simboliza a sorte na região da Alsácia, é portadora da felicidade.

Um agradável odor flutua no ar quando me embrenho pelo antigo mercado coberto, construído em 1865 e devolvido às suas funções originais em 2010, um espaço que respira vida e do qual não me canso. Mas a rua chama por mim, a meio da manhã, para me dar a contemplar construções que nos remetem para a Idade Média e para o Renascimento. Caminho, sem grandes pressas, pela Rue des Clefs, pela Grand’ Rue, pela popular Rue des Marchands, até ir ao encontro da Maison Pfister, erguida em 1537 e com um exterior cuja decoração (painéis pintados e a singularidade da janela e da varanda em madeira) obriga a um olhar mais demorado.

Restauradas de forma exemplar, as casas reflectem o tempo de esplendor que Colmar conheceu durante anos e concorrem para tornar ainda mais harmonioso o quadro que a todo o instante salta à vista. Cada recanto justifica uma fotografia, cada retalho convoca para uma paragem, como a Maison des Têtes, na rua homónima, uma casa levantada em 1609 e com uma fachada soberba coroada por mais de uma centena de rostos em pedra e cabeças de animais.

A cidade percorre-se facilmente a pé e, de onde em onde, parece orgulhosa em exibir os seus pequenos bairros e em preservar uma parte da atmosfera que os definia quando serviam de casa para diferentes e específicas profissões. Como, perto da Rue des Marchandes, o Quartier des Tanneurs, do qual sigo para a Ancienne Douane, o edíficio da antiga alfândega que foi construído em 1480 e que permanece como um dos melhores exemplos da arquiectura civil da Idade Média tardia.

Na Rue des Tanneurs, é nas suas casas altas e nas suas varandas que fixo o olhar e logo a seguir deixo o tempo correr no Quai de la Poissonnerie, o antigo bairro de pescadores que corre paralelo ao rio Lauch. Quando a tarde já avança, recupero energias na ponte da Rue Turenne, apreciando a panorâmica, a harmonia, a tranquilidade que emana da Petite Venise, também conhecida por Quartier de Krutenau, com os seus barcos tão parecidos com gôndolas, com as suas casas admirando-se ao espelho, por vezes admiravelmente desfocadas quando uma embarcação sulca as águas.

Colmar é também uma cidade com alguns museus interessantes, a começar pelo Musée d’Unterlinden, que abriga, entre outras amostras (como uma antiga adega), o renomado Retábulo de Issenheim, pintado no início do século XVI por Grünewald e considerado como um dos mais dramáticos trabalhos alguma vez criados, uma verdadeira jóia de arte religiosa com os seus 13 painéis que se abriam e fechavam em função das festas litúrgicas, como a anunciação, a adoração, a crucificação.

Já na Rue des Marchands, no número 30, a casa onde nasceu Fréderic Auguste Bartholdi (1834-1904), encontra-se o Musée Bartholdi, dedicado à vida e obra do nativo de Colmar que criou a Estátua da Liberdade em Nova Iorque e contendo uma exposição com trabalhos e objectos pessoais do artista. Há ainda o museu Hansi, na Rue des Têtes, o museu de História Natural e de Etnografia, mesmo no coração da Petite Venise, e, finalmente, na Rue Vauban, os mais pequenos têm um espaço que não deixará de os surpreender — o Musée du Jouet, com uma impressionante colecção de brinquedos e comboios antigos. 

Ao ver estes últimos, a minha memória foi assaltada por uma recordação tão vívida, de um pequeno comboio que dava voltas e voltas na montra de uma loja do rés-do-chão de uma bonita casa de pedra e do qual eu não conseguia despregar o olhar quando, pelo Natal, passava na rua. Só com muita dificuldade é que a minha mãe, sempre paciente, me convencia a seguir os seus passos. Há memórias que são como postais. 

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