A Net não tem de ser neutra, tem de ser livre

Se os privados puderem determinar como lhes apetece a gestão do tráfego digital, podem decidir dar prioridade a quem mais paga e podem mesmo bloquear um determinado tipo de tráfego.

Imagine, caro leitor, que a auto-estrada Lisboa-Porto era concessionada a uma nova entidade e que essa entidade tinha autorização governamental para discriminar o tráfego automóvel como lhe apetecesse. Podia, por hipótese, usar seis quiosques de portagem para quem estivesse disposto a pagar o triplo e guardar só duas portagens para quem quisesse pagar o valor mínimo, provocando inevitavelmente engarrafamentos imensos. Pior do que isto, este concessionário podia também decidir que alguns veículos, por razões estéticas, não poderiam passar naquela auto-estrada. Seria a ursupação de um bem público (a estrada) por uma entidade privada que abusaria do poder que tinha para tomar decisões relacionadas com a liberdade de circulação.

Esta é a questão da neutralidade da internet. Se os privados puderem determinar como lhes apetece a gestão do tráfego digital, podem decidir dar prioridade a quem mais paga e podem mesmo bloquear um determinado tipo de tráfego (uma empresa fundamentalista poderia por exemplo impedir os seus clientes de aceder a sites pornográficos ou com informações sobre algumas religiões). Ou seja, há gravíssimos problemas de concorrência económica e de liberdade de expressão num cenário de internet não neutra. E tudo isto acontece num país que não é propriamente exemplar em termos de acesso digital — há manifestamente poucos pontos de acesso livre nas cidades americanas e as velocidades de navegação são genericamente mais baixas do que em Portugal, por exemplo. 

Portanto, o que está em causa é a liberdade e a igualdade de condições no acesso a um bem. É verdade que os Estados Unidos não são propriamente amigos de políticas igualitárias, mas eram tradicionalmente fãs da liberdade – só que esta versão trumpista do capitalismo privilegia a produção legislativa a quem mais paga, e nem o receio de pôr em causa a livre iniciativa que tem sido a própria base do modelo norte-americano assusta. Sempre que os monopólios foram favorecidos, o consumidor perdeu – quando estes foram combatidos a sociedade no geral ganhou. Contra esta lei há muitas vozes autorizadas: os criadores da internet, as grandes empresas tecnológicas, as entidades responsáveis pela liberdade de expressão na rede e os pensadores digitais mais influentes. Mas nem isso demove Trump e os seus apóstolos, pelo que ontem a ideia de sociedade aberta e a liberdade perderam mais uma batalha nos EUA.

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