Como combater um incêndio que dura há duas décadas?

Gabinete da Cidade criado no pós-incêndios de 2016 apresentou o diagnóstico da capital madeirense apontando para o futuro. Autarquia já sinalizou prioridades, mas ressalva que é necessário o envolvimento de toda a sociedade.

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Incêndios em 2016 REUTERS/Duarte Sa
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Enxurradas em 2010 Enric Vives Rubio
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Cheias em 2010 REUTERS/Duarte Sa
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Incêndios em 2016 Miguel Manso

Mais de um ano depois dos incêndios de Agosto de 2016, o Funchal ainda arde. O incêndio, diz ao PÚBLICO o arquitecto Paulo David, está presente na decadência de algum do edificado da cidade. Reside nos espaços que não convivem com os lugares envolventes. Habita, em lume brando, no centro histórico desertificado a par dos investimentos imobiliários que foram nascendo na periferia da cidade.

Uma cidade sem vizinhos, não é uma cidade.” Paulo David, o multipremiado arquitecto que a Câmara Municipal do Funchal chamou para (re)pensar a cidade no rescaldo dos incêndios que durante uma semana andaram entre o casario antigo da capital madeirense, fala do fogo como uma quase causalidade, e da presença humana como acidente maior.

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Paulo David Carlos Lopes

“O ‘evento’ do fogo constituiu o acidente, porque encontrou um caminho fértil para a sua ignição. O evento antrópico constitui o acidente maior, a decadência, o abandono, a desertificação, a ruína, os devolutos, a falência, a instabilidade, o envelhecimento, a pobreza, a invasão de carros, a poluição, isto é, o incêndio que arde docilmente durante mais de vinte anos sem se apagar”, enumera Paulo David, que coordenou durante ano e meio o Gabinete da Cidade.

Foi um trabalho exaustivo, que mapeou a evolução do Funchal, cruzando-a com os acidentes naturais que foram ocorrendo, e cujas conclusões foram apresentadas no início do mês. São, sintetiza Paulo David — Medalha Alvar Aalto 2012, importante prémio internacional de arquitectura —, quatro grandes áreas de intervenção: as zonas envolventes às três ribeiras que atravessam a cidade e a Avenida do Mar, a marginal que liga o Funchal de este a oeste.

As ribeiras — pequenos cursos de água que descem a cidade — têm sido os fios condutores das catástrofes que têm atingido a cidade. Se em Fevereiro de 2010, no aluvião que provocou 43 mortos e seis desaparecidos, trouxeram a fúria das águas, rochas e entulho até à Baixa, em 2016, nos incêndios que se prolongaram por quase uma semana, conduziram o fogo pela vegetação das margens até ao centro histórico. Por isso, a primeira resposta tem de ser ali. Como? Usando a própria natureza. “O que propomos é a criação de parques de transição, parques urbanos e de espaços públicos que sirvam de protecção para a cidade”, explica Paulo David, lembrando que o Funchal cresceu a fortificar-se dos ataques de corsários. Agora as ameaças não residem no mar, mas nas montanhas. “Não vamos criar muralhas, mas usar a própria natureza como defesa.”

A autarquia, presidida por Paulo Cafôfo, eleito numa coligação apoiada por PS e Bloco de Esquerda, está satisfeita com o resultado do trabalho produzido pelo Gabinete da Cidade. “Trata-se de um trabalho notável, que constitui um marco no pensamento da cidade”, sublinha ao PÚBLICO o gabinete da presidência, definindo como “estruturante” para a “regeneração, o reordenamento e o desenvolvimento” urbano do Funchal o diagnóstico efectuado pela equipa liderada por Paulo David e João Favila Menezes, que teve Gonçalo Byrne e João Gomes da Silva como consultores científicos.

“A realização das intervenções propostas implicará o envolvimento de todos, da sociedade civil à academia, das juntas de freguesia, ao governo regional e ao Governo da República, e essa é uma abordagem integrada que o actual executivo se empenhará em promover desde já”, acrescenta a presidência, adiantando que o ponto de partida das intervenções será o núcleo histórico de São Pedro. Foi ali que Paulo David falou a Marcelo Rebelo de Sousa — quando o Presidente da República visitou naquele Agosto de 2016 um Funchal ainda atordoado pelos incêndios — dos planos para a cidade, estabelecendo um paralelo com o que Siza Vieira fez com o Gabinete do Chiado ou com o que Marquês de Pombal desenhou após o terramoto.

“A intervenção feita no Chiado serviu de alavanca para o aquilo que é hoje Lisboa. O que pretendemos fazer aqui é ir mais longe e pensar toda a cidade”, explica o arquitecto que liderou uma equipa multidisciplinar e que efetuou um levantamento denso da cidade, quase quarteirão a quarteirão, como são reveladoras as mais de 10 mil fotografias de Duarte Belo. Um trabalho que pode ser consultado em gabinetedacidade.cm-funchal.pt

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