Será a nossa necessidade de ódio impossível de satisfazer?

O meu temor, neste início de século XXI, é que a nossa necessidade de consolo se satisfaça pela vontade de odiar.

O artigo do PÚBLICO que noticiou a queda de fragmentos do Templo Romano de Évora teve menos de sessenta partilhas no site deste jornal. Uma ínfima fração das dezenas de milhares de partilhas que teve o famoso caso do jantar no Panteão Nacional. Para um monumento que está naquele lugar há dois mil anos não houve petições com milhares de assinaturas, debates apressados na Assembleia da República, intervenções de líderes partidários, comentários nos programas de fim-de-semana. Nada. E trata-se, se é possível comparar, de um monumento de maior importância. A que quase ninguém deu importância. Quando estava cair aos pedaços.

Porquê? É simples: não havia ninguém para odiar.

Pelo contrário, há gente para elogiar: a Direção Regional de Cultura do Alentejo e a Universidade de Évora agiram rápido e o monumento foi restaurado em seis meses. O artigo de anteontem no PÚBLICO que dá a boa notícia teve pouco mais de quinhentas partilhas. Um dos nossos monumentos mais importantes esteve em risco sério — as fragilidades eram “imensas”, diz o artigo — sem que ninguém tenha dado por isso.

Porquê? Repito: não havia ninguém para odiar.

Mas no caso desta semana, sobre o qual escrevi quarta-feira, envolvendo um sórdido caso de prepotência, nepotismo e má gestão numa instituição de solidariedade social que se dedica ao tratamento de pessoas com doenças raras, já há a quem odiar. E há que dizê-lo: não parece que nos façamos rogados.

Arriscando sujeitar-me ao mesmo tipo de crítica, não posso deixar de confessar: tenho um problema com esta cultura. Não com o justo opróbrio a quem se tenha aproveitado da boa vontade alheia e do dinheiro público. Não com a reprovação a quem tenha sido passivo perante as evidências deste caso. Não com o pagamento do devido preço político, no caso de políticos. O meu problema é com o debate dominado por sentimentos — o ódio, o medo, a paixão, a raiva, o rancor — que são por natureza monopolistas.

Este é o tipo de debate que sequestra a sociedade e a leva a decidir depressa e mal. Como após Pedrógão. Como agora: vejo por aí exigências de que todo o trabalho em IPSS seja gratuito ou de que se deixe de financiar os cuidados continuados em instituições privadas (cheira a “negócio”). Não vejo bem encaminhado o debate que nos permitiria acabar com as hipocrisias e os clientelismos de que padece grande parte do terceiro setor e nos permitisse torná-lo mais sustentável em geral e mais profissionalizado quando deveria sê-lo. A cena do ódio tudo apaga. Daqui a uns tempos passaremos à próxima indignação. Não seria tão grave se entre uma coisa e outra não houvesse um rasto de decisões tomadas pela metade e anunciadas para saciar os sentimentos monopolistas.

Um dos maiores escritores do século XX, Stig Dagerman, escreveu um livro com o título A Nossa Necessidade de Consolo é Impossível de Satisfazer. O meu temor, neste início de século XXI, é que a nossa necessidade de consolo se satisfaça pela vontade de odiar.

Quem me conhece, ainda que superficialmente, sabe que responderei sempre à pergunta que pus no título desta crónica pela negativa. Não tenho dúvida de que os sentimentos monopolistas podem ser contidos por outro tipo de sentimentos, a que eu chamaria de cívicos, e que são interdependentes. Ao contrário do medo ou do ódio, que não permitem que se sinta mais coisa nenhuma, o sentimento cívico precisa da generosidade, que precisa da empatia, que precisa da imaginação, e por aí adiante.

Mas ainda que acredite nisso, há dias em que olho para o nosso debate público — e não só nas redes sociais, note-se, e não só em Portugal — e penso que está na altura de fazer a pergunta incómoda: estará a nossa necessidade de ódio, na política como na religião como no futebol, a ficar impossível de satisfazer? Encaremo-nos ao espelho antes que fiquemos mais feios.

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