A convicção da arquitectura

Confiantes na potência formal da arquitectura, os desenhos exploram a abstração dos espaços, são volumes simples que acentuam a geometria das superfícies.

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Centro de Convívio de Grândola Nelson Garrido

A distinção de Manuel Aires Mateus com o Prémio Pessoa confirma a posição central da arquitectura na cultura portuguesa contemporânea. Após Eduardo Souto de Moura, distinguido em 1998 e João Luís Carrilho da Graça em 2008, Aires Mateus é consagrado como o arquitecto português da década. A notícia não constitui uma surpresa. Desde o tempo em que colaborava com o arquitecto Gonçalo Byrne era perceptível o seu talento e determinação para a construção de uma arquitectura de qualidade. Nos anos de 1990, no boom da infraestruturação do país, abundavam concursos públicos que permitiram a uma nova geração de arquitectos reequacionar as ansiedades da arquitectura portuguesa após o 25 de Abril. Tinha acabado a euforia do pós-moderno e a auto-estrada Lisboa-Porto esvaziava o sentido às dicotomias regionais, permitindo aos arquitectos medirem-se em contexto europeu. Em conjunto com o seu irmão Francisco, os Aires Mateus rapidamente se inscreveram na vanguarda da cultura europeia, refrescando o legado de Álvaro Siza e abrindo novos horizontes à prática da arquitectura e transformação da cidade e do território.

A crítica mais dura que se faz ao seu trabalho é que as obras parecem ser mais projectos do que construções. Confiantes na potência formal da arquitectura, os seus desenhos exploram a abstração dos espaços, são volumes simples que acentuam a geometria das superfícies. Imagine-se um quadrado, um círculo, uma estrela, uma cruz, as superfícies transformam-se em volumes cujas dimensões permitem ser habitados e habitar esses espaços transforma-se por si só numa experiência física singular. Passamos a viver um universo de formas, aparentemente puras e lapidares, mas cujas intersecções entre elas geram momentos sublimes. Subir as escadas para o piso superior passa a ser uma experiência transcendente, um janelão aberto sobre a paisagem transporta para o interior a vitalidade da vida exterior, cada espaço tem uma singularidade própria que lhe dá carácter, um carácter evidente, forte.

Esta concepção é possível porque desde o final do século XX as tecnologias de construção mudaram substancialmente. E foi essa transformação, que tornou a construção mais leve, que permitiu a Aires Mateus desenvolver uma linguagem muito própria onde o cunho da autoria constituiu uma síntese entre a transformação tecnológica do estaleiro (novos materiais e novas formas de construir), a mudança dos sistemas de produção de projecto (a entrada e omnipresença do computador nos ateliers) e um novo “ar do tempo”, com as formas e espaços despojados a tomar conta das revistas de lifestyle e da ambição dos clientes afortunados. É dessa “leveza” que nasce a crítica, mas também é essa “leveza” que confere a máxima pujança à obra de Aires Mateus.

A prática pedagógica e o ensino foram fundamentais para dar solidez e sentido a esta arquitectura e é de assinalar que para os irmãos Aires Mateus essa possibilidade existiu na Academia di Architettura di Mendrisio, na Suíça, e não em Portugal, onde demorou até às escolas quererem alinhar-se pela renovação das práticas de ensino em função do que é a prática profissional contemporânea. Manuel Aires Mateus tornou-se conferencista regular em todos os lugares do mundo. As obras que construiu em Portugal serviram de motor para constituir um discurso e uma posição de projecto clara, reclamando para a arquitectura a possibilidade de intervir na cidade e de participar na formação da nossa cultura. Não tardaram as encomendas internacionais e a conquista de projectos relevantes em França, na Bélgica, na Suíça.

Em Lisboa, a sede da EDP no Cais do Sodré foi a primeira prova de fogo em que a ampliação da escala colocou o arquitecto perante novos desafios. Será que a sua concepção do projecto resistiria a uma nova dimensão de obra? O certo é que não só resistiu como abriu novos caminhos expressivos e novas perspectivas para o desenvolvimento do seu trabalho. A confirmação dessa possibilidade já é visível no centro Olivier Debré em Tours ou na escola de arquitectura de Tournai. Outras obras virão. O que é fundamental reter do seu trabalho e da sua postura é a convicção da arquitectura como uma disciplina valiosa para a construção do nosso espaço contemporâneo, para a afirmação das nossas expectativas perante a sociedade e a cultura. E é essa convicção que o Prémio Pessoa acaba de distinguir.

Observar o percurso profissional e cultural de Manuel Mateus também demonstra como a atribuição do prémio a este autor é importante. Hoje, particularmente em Portugal, a arquitectura está sob ataque. Não há concursos de arquitectura que permitam a novos arquitectos afirmarem-se como se afirmaram os irmãos Aires Mateus quando foi o seu tempo. Os honorários de projecto e condições de exercício da profissão são cada vez mais precários. A arquitectura aparece no fim da linha e, em obra, os advogados e juristas acabam por ter mais controlo sobre as decisões de projecto do que os próprios arquitectos. A cultura é profundamente desvalorizada no confronto com o endeusamento da economia e do progresso tecnológico. Neste contexto, a atribuição do Prémio Pessoa a Manuel Mateus assinala o paradoxo que existe entre a prática e a celebração da arquitectura. O contexto positivo e optimista dos anos de 1990 permitiu a Aires Mateus crescer, galgar fronteiras e construir obras que o tornam numa referência para a cultura contemporânea. Mas será possível, para além da celebração dos autores de excepção, continuar a fazer da arquitectura uma forma de cultura? Este prémio reabre a esperança no futuro.

Programador de arquitectura do Centro Cultural de Belém

 

 

 

 

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