Prémio Pessoa para a arquitectura quase sublime de Manuel Aires Mateus

Vencedor foi anunciado esta sexta-feira, em Sintra. Arquitecto diz que o prémio é para ele, para o irmão Francisco e para a equipa que com eles trabalha. Críticos falam de uma obra com “gestos muito abstractos e muito radicais” no que toca à manipulação da geometria e das formas, de uma “obra visceral”.

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O arquitecto Manuel Aires Mateus, 54 anos, é o vencedor do Prémio Pessoa 2017. “A sua arquitectura é moderna, abstracta e contemporânea”, justificou o júri. Uma distinção que confirma “a posição central da arquitectura na cultura portuguesa contemporânea”, observa o arquitecto e investigador André Tavares. “Após Eduardo Souto de Moura, distinguido em 1998 e João Luís Carrilho da Graça em 2008, Aires Mateus é consagrado como o arquitecto português da década”.

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O arquitecto Manuel Aires Mateus, 54 anos, é o vencedor do Prémio Pessoa 2017. “A sua arquitectura é moderna, abstracta e contemporânea”, justificou o júri. Uma distinção que confirma “a posição central da arquitectura na cultura portuguesa contemporânea”, observa o arquitecto e investigador André Tavares. “Após Eduardo Souto de Moura, distinguido em 1998 e João Luís Carrilho da Graça em 2008, Aires Mateus é consagrado como o arquitecto português da década”.

Das suas obras em Portugal, o júri, que incluiu Eduardo Souto de Moura, destacou a sede da EDP em Lisboa, “onde, com dois fragmentos paralelos, o arquitecto constrói uma praça virada a sul protegida por brise-soleils, com grande efeito plástico”. A acta do júri salienta ainda que, na obra de Aires Mateus, “a construção de formas e volumes é feita com um carácter inovador, por subtracção de matéria, esculpindo vazios, contrariando assim o sentido clássico do projectar”.

Manuel Aires Mateus começou a sua carreira no atelier de Gonçalo Byrne – onde trabalhou entre 1983 a 1988 -, tendo depois fundado um atelier com o seu irmão Francisco. Mais tarde acabaram por ter cada um o seu próprio atelier – Manuel Aires Mateus mudou-se recentemente para um prédio na Rua Cecílio de Sousa – mas, como explicou numa grande entrevista ao PÚBLICO na altura da conclusão da sede da EDP, os dois continuam a assinar várias vezes em conjunto, principalmente nos trabalhos de maior dimensão. É o caso do projecto para Lausanne, em que a dupla ganhou o concurso para o Museu da Fotografia de Elysée e o Museu de Design e Arte Contemporânea, ultrapassando pelo caminho propostas de três prémios Pritzker.

Nos últimos anos, os seus projectos têm ganho uma maior dimensão, nomeadamente em Lisboa, com a inauguração da sede da EDP em 2015, e depois de ter vencido vários concursos de arquitectura no estrangeiro, o que lhe permitiu a internacionalização da sua obra. Desenhou a Faculdade de Arquitectura de Tournai, na Bélgica, ou o Centro de Criação Contemporânea Olivier Debré, em Tours, França.

O prémio, uma iniciativa do jornal Expresso com o patrocínio da Caixa Geral de Depósitos, tem o valor 60 mil euros e distingue uma personalidade portuguesa que tenha tido uma “intervenção particularmente relevante e inovadora na vida artística, literária ou científica”.

Além de Souto Moura, o júri da 31.ª edição foi constituído por Francisco Pinto Balsemão (presidente), Emídio Rui Vilar (vice-presidente), Ana Pinho, António Barreto, Clara Ferreira Alves, Diogo Lucena, Eduardo Souto de Moura, José Luís Porfírio, Maria Manuel Mota, Pedro Norton, Rui Magalhães Baião e Rui Vieira Nery.

As casas no centro da obra

Comentando ao PÚBLICO o prémio que agora lhe foi atribuído, Manuel Aires Mateus diz que o entende como uma distinção para “a condição da arquitectura portuguesa” e para uma linhagem que passa pelos arquitectos Álvaro Siza e Gonçalo Byrne, mas também por Eduardo Souto de Moura e Carrilho da Graça, dois autores já também distinguidos com o Prémio Pessoa, além de várias outras gerações que vêm dando sequência a esse património. E destaca o facto de o prémio, com a sua marca generalista e decidido por um júri de grande respeitabilidade, ter voltado a incidir sobre a arquitectura.

O arquitecto da nova sede da EDP em Lisboa faz questão de partilhar o prémio com o seu irmão Francisco, com quem tem desenvolvido alguns dos principais projectos – “trabalhamos sempre em conjunto, e quando um de nós ganha, ganhamos os dois”, nota –, e com o conjunto dos colaboradores do seu escritório, realçando que “a arquitectura é sempre um trabalho colectivo”.

E admite que este Prémio Pessoa vem responsabilizá-lo pessoalmente: “É uma responsabilidade séria - vai fazer-me trabalhar mais, e é um alento para esta que é uma profissão de resistência no nosso país”, diz. Aires Mateus refere ainda a existência de uma espécie de “pirâmide” das diferentes gerações no país, encabeçada pelos nomes que atrás referiu, e que continua a ser sustentada “por muitos arquitectos jovens que vão sendo também reconhecidos em Portugal e que têm hoje um percurso internacional também muito bom”.

Entre os trabalhos que o seu atelier tem actualmente em mãos, cita o Museu de Design de Lausanne, na Suíça, cuja obra deverá começar a ser construída na Primavera do próximo ano. Mas realça que os projectos que mais lhe interessam são as casas. “Pela escala, e pela relação muito estreita que implica com os clientes, as casas estão sempre mais próximas de nós e continuam a ser o corpo central do nosso trabalho”, diz.

Eduardo Souto de Moura, galardoado com o Prémio Pessoa em 1998, mostra-se “muito contente” com esta decisão. “É o reconhecimento da obra do Manuel Aires Mateus, mas também da disciplina da Arquitectura, que parece começar a passar novamente por um bom momento”, disse ao PÚBLICO o autor do Estádio Municipal de Braga, que vê também no prémio agora atribuído a Manuel Aires Mateus o reconhecimento de alguém que “já fez muito bem, e vai agora ser incentivado a continuar a trabalhar e a fazer ainda melhor”.

Souto de Moura vê aqui o essencial do espírito do Prémio Pessoa, que é o de distinguir alguém a meio da carreira. Com este prémio, e com o seu reflexo público, Manuel Aires Mateus “pode ter acesso a mais trabalho, e melhores condições para continuar a fazer a sua arquitectura”, acrescenta Souto de Moura, acentuando a relevância que a sua obra já tem em Portugal mas também no estrangeiro, onde a arquitectura portuguesa tem tido mais reconhecimento nos últimos anos.

Se olharmos para a lista do Prémio Pessoa, que já leva 31 edições, podemos dizer que, grosso modo, de dez em dez anos o escolhido é um arquitecto. João Luís Carrilho da Graça, que recebeu o prémio em 2008, exactamente dez anos após Souto de Moura, está “contente” por ver de novo a arquitectura na lista e, em particular, aquela que é feita por Manuel Aires Mateus.

Salientando que parte da obra deste arquitecto é feita em parceria com o seu irmão Francisco, Carrilho da Graça, autor de projectos como o novo terminal de cruzeiros de Lisboa ou do Teatro de Poitier, França, salienta nos Aires Mateus a capacidade de lidar com as questões com que são confrontados na actualidade – as especificidades dos projectos e dos contextos a que eles se destinam – sem perder os referentes que são entendíveis e partilhados por todos: “Tal como [Álvaro] Siza há uns anos, o seu trabalho dá resposta aos problemas da arquitectura hoje sem perder de vista os valores e as referências universais.”

Sensibilidade e bom senso

O que fazem Manuel e Francisco Aires Mateus com o seu trabalho é mostrar que a arquitectura portuguesa está viva e é capaz de se renovar, pegando num “legado universal que se vai tornando específico”, mercê de uma série de reinterpretações. Quem o defende é Nuno Grande, curador e professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Coimbra para quem este prémio, “muito justo”, distingue uma dupla de uma complementaridade rara: “Eles não se repetem, completam-se. São uma mistura de sensibilidade e bom senso, em que uma vezes é o Manuel o da sensibilidade e o Francisco o do bom senso, e noutras o contrário.”

Para este arquitecto e programador cultural, o grande contributo dos Aires Mateus para o legado da arquitectura portuguesa é a sua autonomização de um sistema que por vezes a limita. Um contributo que os leva a “gestos muito abstractos e muito radicais” no que toca, por exemplo, à manipulação da geometria, das formas e da sua plasticidade. “Eles sabem dialogar com os lugares, mas não fazem uma arquitectura contextualista como o Siza e o Távora. Conseguem criar uma ruptura mas sem ferir de morte a pré-existência; mais, conseguem criar um corpo estranho nessa pré-existência que, depois de construído, lhe dá uma nova vida.”

É por isso, acrescenta Nuno Grande, que a sua radicalidade é feita na continuidade. Exemplo disso é o projecto da Faculdade de Arquitectura de Tournai, na Bélgica, que se transformou numa “espécie de aula permanente” para todos os que ali estudam. Com ele cosem os espaços conquistados a um convento-hospital do século XVII e a duas fábricas do século XIX. “O projecto de Tournai mostra que os Aires Mateus são como um vírus bom que, em vez de gerar uma doença, cicatriza uma parte da cidade, alastrando-se a vários espaços que passam a fazer sentido juntos.”

Sintonizada com André Tavares na convicção de que este prémio “é o reconhecimento do lugar que a arquitectura ocupa hoje em Portugal”, a crítica de arquitectura Ana Vaz Milheiro vê também nele o reconhecimento de um “percurso notável” feito a dois. “Percebo que o prémio seja atribuído ao Manuel porque ele é, pela sua personalidade e pela incrível capacidade que tem de comunicar com os outros, o rosto dessa parceria que forma com o Francisco”, argumenta Vaz Milheiro, notando que “é muito comum isso acontecer nas duplas de arquitectos, é como se fosse o frontman de uma banda”. Mas acrescenta que, mesmo para o especialista, é muitas vezes difícil discernir onde termina o trabalho de um e começa o de outro quando se está perante um projecto dos dois irmãos.

Manuel e Francisco Aires Mateus têm cada um o seu escritório e a sua equipa, mas têm também o hábito de co-assinar. “É por isso que é mais confortável para mim falar de dupla mesmo que esteja a falar de um prémio para Manuel Aires Mateus”, diz a crítica de arquitectura do PÚBLICO, que acompanha os seus projectos desde o começo da década de 1990, “quando faziam cenários para peças do Sam Shepard [O Verdadeiro Oeste, com encenação de António Feio, 1992]”.

Uma contenção sublime

O percurso dos Aires Mateus é dos “mais sólidos e consistentes” da arquitectura portuguesa, garante, lembrando que começaram a trabalhar no escritório de Gonçalo Byrne, onde “aprenderam a lidar com o lugar, a olhar para a cidade como se fosse um sítio arqueológico de onde se tiram pedaços do passado, onde se vão buscar referências para trabalhar”. Mas se Byrne “trabalha muito bem essa ideia de que a obra arquitectónica plasma a história dos lugares”, os irmãos Mateus “não se limitaram a reproduzi-la, reapropriaram-se dela e reinventaram-na à sua medida.”

Para Vaz Milheiro, nesses anos de formação profissional, os Aires Mateus foram “actualizando” a linguagem arquitectónica de Byrne até chegarem à sua própria linguagem, hoje absolutamente reconhecível: “Eles lêem muito bem os sinais do tempo do ponto de vista formal – os volumes, os materiais que dão texturas e sombras… E fazem-no de forma visceral, entre o platónico e o vernáculo. A abordagem do arquitecto Byrne é muito mais cultural. A deles vem de dentro.”

Essa leitura particular da geografia e até da topografia dos lugares a que Vaz Milheiro se refere é evidente, por exemplo, nas casas unifamiliares que têm vindo a projectar no Alentejo. “Eles renovam os temas da arquitectura portuguesa de uma forma muito particular”, diz, uma capacidade que atribui também à insistência com que o novo Prémio Pessoa reflecte sobre a arquitectura. Manuel Aires Mateus transformou o seu escritório numa verdadeira escola em que os jovens arquitectos, portugueses e estrangeiros, ambicionam trabalhar, aprender. No seu atelier conta actualmente com 40 colaboradores, 15 deles estrangeiros (japoneses, italianos, franceses, belgas, sírios, alemães, cabo-verdianos). “E isto é porque ele gosta de pensar a arquitectura, não se concentra só em fazê-la, e isso é só do Manuel, é ele que tem essa ambição de fazer do seu escritório um espaço para a prática e a cultura da arquitectura”, acrescenta Milheiro.

A esta atitude de “pedagogo” de Manuel Aires Mateus não será certamente estranha a sua capacidade de falar sobre o que faz, que põe em prática em conferências e enquanto professor de uma das melhores escolas de arquitectura do mundo, a de Mendrisio, na Suíça.

Obrigada a um exercício de concisão para escolher apenas alguns projectos do extenso portefólio dos Aires Mateus, a crítica de arquitectura escolhe três, e por motivos bem diferentes: o edifício da reitoria da Universidade Nova de Lisboa, porque “foi ganho num momento importante e lhes permitiu ganhar autonomia”; a Casa em Azeitão (2003), “com os seus blocos pendurados”, que foi “o projecto que os colocou nos circuitos internacionais dada a radicalidade da solução encontrada”; e a sede da EDP em Lisboa, pelo “impacto na cidade e a capacidade que tem de pôr toda a gente a falar de arquitectura”.

O arquitecto cuja importância na fase inicial da carreira dos irmãos Aires Mateus Ana Vaz Milheiro sublinha, Gonçalo Byrne, diz que esta distinção o deixa muito satisfeito por dois motivos: por um lado, porque se trata de ver reconhecida no país a importância da arquitectura portuguesa, “coisa que é mais fácil de acontecer lá fora”, e, por outro, porque é um “prémio mais do que merecido” para os Aires Mateus. “A sua arquitectura tem hoje um nível de excelência, com pontos comuns com a melhor que se faz cá e lá fora”, garante o arquitecto.

“A consciência que têm da importância do reconhecimento dos sítios e da relação dos objectos com a paisagem, urbana e não só, gera grandes mais-valias. É por isso que a sua arquitectura tem qualidades ambientais, espaciais e formais extraordinárias, mas também por causa da escolha dos materiais, de uma paleta reduzida mas muito forte, com personalidade.” A combinação dos dois factores, defende Byrne, é muito evidente, por exemplo, nas “moradias excepcionais” que Manuel Aires Mateus fez no Alentejo. A Casa na Fontinha, Melides (2014), e outra na costa alentejana (Muda, 2016), sao alguns dos seus projectos mais recentes naqula região.

Isto não quer dizer, no entanto, que a sua obra seja “homogénea”, ressalva o arquitecto, já que têm “progredido muito e variado bastante”. E, para o provar, sugere a comparação de quatro projectos: o da reitoria da Universidade Nova de Lisboa, o da sede da EDP, o do Museu de Lausanne e o da faculdade de Tournai. “Há sempre pequenos saltos em frente, na continuidade.” E recusando sempre a “espectacularidade fácil”, algo que é “muito sábio”: “A sua arquitectura é contida. Diria que é, talvez exagerando um pouco, sublime.”

Nascido em Lisboa em 1963, Manuel Aires Mateus licenciou-se em Arquitectura em 1986, na Universidade Técnica de Lisboa, e iniciou a sua carreira no atelier de Gonçalo Byrne, que deixou para fundar o seu próprio escritório com o irmão Francisco, no final dos anos 1980.

Na primeira metade da década de 90 projectou várias casas e assinou, em 1993, o seu primeiro projecto público: o Bloco II de um lar de idosos da Santa Casa da Misericórdia de Grândola. Ainda em Grândola, fez em 1995 a renovação urbana do Largo de Catarina Eufémia, mas foi, no ano anterior, o projecto para as novas instalações da Ordem dos Engenheiros, em Lisboa, que trouxe notoriedade pública ao seu trabalho.

Datam ainda das décadas de 1990 e de 2000 o plano de recuperação urbana do Centro Histórico de Grândola (1999), e os projectos para a Residência Universitária de Coimbra (1998) e para a reitoria da Universidade de Lisboa (2001), ambos “determinantes” na carreira dos dois irmãos arquitectos, segundo a crítica Ana Vaz Milheiro. O Centro Cultural de Sines (2006), o edifício da Portugal Telecom em Santo Tirso (2010) e as Residências Assistidas da Santa Casa da Misericórdia em Alcácer do Sal (2010) são alguns dos projectos públicos que marcaram os anos seguintes, em que os Aires Mateus continuaram a desenhar casas e a recuperar edifícios.

Nos projectos internacionais que se intensificaram nos últimos anos, destaque para a Faculdade de Arquitectura de Tournai (Bélgica, 2014) e para os dois museus de Lausanne (Suíça, 2015).