EUA acabam com neutralidade na Net e põem lenha numa fogueira antiga

Regulador americano pôs fim a regras criadas durante a governação de Obama e dá muito mais liberdade aos operadores.

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Manifestante contra o fim da neutralidade da Net Jonathan Alcorn/REUTERS

Sem surpresas, o regulador americano para as comunicações aprovou o fim das garantias da chamada neutralidade da Internet, abrindo caminho a que os operadores possam bloquear ou privilegiar serviço online de acordo com os seus interesses. A neutralidade tem sido a regra tanto nos EUA como na Europa, onde está protegida por legislação, mas a decisão relança uma discussão que muitos já tinham dado por encerrada, ainda que tivesse zonas cinzentas.

Os votos dos três comissários republicanos na Comissão Federal de Comunicações (FCC, na sigla inglesa), que é presidida pelo republicano Ajit Pai (um antigo advogado da operadora Verizon), sobrepuseram-se aos dois votos democratas. O resultado dá luz verde ao plano de Pai para desmantelar os mecanismos legais que desde 2015 impunham uma rede neutral, o que inclui uma decisão, incentivada por Barack Obama, de classificar a Internet como um serviço de telecomunicações passível de ser regulado.

A posição da FCC permite que os operadores possam criar pacotes de conteúdos de Internet (de forma semelhante ao que fazem com os canais de cabo), dar prioridade a alguns serviços e, eventualmente, bloquear outros, consoante as suas estratégias comerciais e aquilo que cada prestador de serviço online (como o Netflix, YouTube ou Amazon) lhes pague. O único requisito é que os operadores divulguem as suas práticas. Ainda não é claro o que farão os operadores nos EUA com a margem de manobra que agora lhes é novamente dada.

Um dos principais argumentos de Pai é que a Internet cresceu sem regulação até muito recentemente, sem que isso fosse um problema. “A Internet não estava estragada em 2015. Não estávamos a viver numa distopia digital”, afirmou nesta quinta-feira. “O grande problema que os consumidores têm com a Internet não é e nunca foi que o seu fornecedor de acesso esteja a bloquear o acesso a conteúdos. É que não têm acesso de todo.” A decisão tem sido alvo de contestação forte por parte de grupos de defesas dos consumidores nos EUA, e deu azo a múltiplos protestos na Internet e fora dela.

Uma questão de prioridade

À semelhança do que aconteceu há alguns anos, quando a neutralidade era prática corrente mas não havia ainda leis que a tornassem obrigatória, o tema está a suscitar uma discussão acesa, que, em parte, se tem também estendido a este lado do Atlântico.

A neutralidade na Internet é um garante de que os dados de todas as empresas e serviços são tratados da mesma forma, sem que os operadores de telecomunicações possam dar tratamento preferencial a uns em detrimento de outros. Isto significa que os vídeos de uma pequena startup são transmitidos à mesma velocidade que os vídeos do gigante YouTube, nivelando assim o terreno da competição. Se um operador decidisse dar prioridade aos vídeos das empresas que estivessem dispostas a pagar por isso, as multinacionais com grandes orçamentos teriam condições para pagar e assim fazerem com que os seus vídeos fossem transmitidos mais rapidamente para os clientes daquele operador. O mesmo é válido para qualquer outro tipo de conteúdo.

Sem neutralidade, os operadores também poderão dar prioridade aos seus próprios serviços e sites – e é frequente as empresas de telecomunicações terem associado um negócio de conteúdos. Em teoria, os operadores poderão também, por exemplo, bloquear ou tornar lentos os serviços de chamadas por Internet, que concorrem com os serviços de chamadas de voz.

O resultado de uma rede não neutral seria uma Internet a várias velocidades, na qual aqueles que tivessem dinheiro e disposição para pagar teriam acesso a uma espécie de via rápida, enquanto os outros estariam relegados para uma faixa mais lenta. Em última instância, os operadores poderão criar pacotes de Internet que só permitem o acesso a determinados serviços e conteúdos. Por exemplo, um pacote para serviços de mensagens e outro para serviços de vídeo.

Gigantes vs operadores

A defender a neutralidade estão muitos grupos de consumidores e também as grandes empresas da Internet, como o Google, a Amazon, o Facebook e o Netflix, que preferem não ter de pagar a operadores para fazerem parte de pacotes especiais ou para terem acesso a uma via mais rápida. Do outro lado, os operadores argumentam que têm de poder gerir as suas infraestruturas e criar ofertas para os clientes, e que só desta forma conseguem rentabilizar os investimentos que fazem para suportar um volume de tráfego que é cada vez maior. Os operadores também defendem que precisam de ter incentivo económico para melhorar as infraestruturas e para disponibilizar serviços que precisam de grande largura de banda. 

As discussões sobre a neutralidade são, para os padrões da Internet, antigas, e correram mais ou menos em paralelo nos EUA e na União Europeia, bem como noutros pontos do mundo. O primeiro país a adoptar legislação para garantir a neutralidade foi o Chile, em 2010.

Nesse mesmo ano, e quando os hábitos dos consumidores online eram muito diferentes, a FCC tomou algumas medidas para proteger a neutralidade na Internet fixa, deixando de fora as redes móveis (os operadores podiam, por exemplo, bloquear o acesso a aplicações). A decisão acabou disputada na justiça, onde a operadora Verizon conseguiu uma vitória, com os tribunais a declararem que aquela entidade não tinha competências para regular o assunto. Mais tarde surgiram então a reclassificação da Internet e as medidas para garantir uma rede neutral.

Já na União Europeia, o princípio da neutralidade foi inscrito num regulamento de 2015 do Parlamento Europeu, como parte de um pacote legislativo que ficou conhecido como Continente Conectado (o mesmo que pôs fim às taxas de roaming). Nessa altura, um número reduzido de Estados-membros já tinha criado legislação própria. Em Portugal, o assunto tinha sido debatido no Parlamento, com a neutralidade a ser defendida pelo PCP e Bloco de Esquerda.

Áreas cinzentas

Portugal acabou por ser brevemente arrastado para a actual discussão nos EUA, quando uma oferta da Meo foi usada por políticos e sites noticiosos americanos ilustrarem as potenciais consequências do fim da neutralidade: a empresa permite aos clientes comprarem tráfego móvel que pode ser usado apenas em conjuntos de aplicações específicas (por exemplo, aplicações de mensagens como o Skype e o WhatsApp). O operador afirmou na altura que cumpre o regulamento europeu e que a oferta é “um reflexo das preferências dos clientes".

Uma outra prática de alguns operadores é permitirem que o acesso a determinadas aplicações e serviços não sejam contabilizados para os limites de tráfego móvel, algo que é conhecido como “zero rating” e que é visto por muitos como uma excepção permitida pelo regulamento europeu ao princípio da neutralidade, ou, pelo menos, como uma área cinzenta. “Fora das questões do zero rating, na Internet móvel, a situação é bastante razoável. Esse é o único ponto onde a situação não é clara”, observou ao PÚBLICO o académico José Legatheaux Martins, presidente do braço português da Internet Society, uma associação de promoção da Internet.

Legatheaux Martins, um veterano defensor da neutralidade da Internet, argumentou que a Internet deve ser "um veículo de intermediação genérico" e alertou que "deixar aos operadores a decisão final" poderá ter consequências "muito complicadas, de influência mais directa sobre o que as pessoas podem ler ou ver".

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