O sacrifício dos inocentes

A Justiça puniu exemplarmente estes arguidos.

Estou certo que nomes como Warren Jeffs ou Victor Barnard pouco ou nada dirão à maioria dos portugueses. Na verdade, para estudiosos da criminologia como eu, os nomes desses dois norte-americanos representam a associação perversa entre o fenómeno da seita religiosa e da influência maléfica do pseudo guro espiritual e o abuso sexual de menores. Não pude deixar de reflectir sobre o fosso abismal entre o sistema penal português e o americano, sobretudo quanto às molduras penais pela prática deste tipo de crime, quando, em Agosto de 2011, um tribunal do Texas condenou a uma pena de prisão perpétua Warren Jeffs, líder de uma seita poligâmica, por abuso sexual de duas menores, que mantinha como “esposas espirituais”.

Em Portugal, Warren Jeffs enfrentaria uma moldura penal não superior a 10 anos por cada crime de abuso sexual de menores e uma pena não superior a 25 anos, caso fosse condenado em cumulo jurídico por cada um dos vários crimes que cometeu.

Até ter tido conhecimento das notícias, de que uma falsa seita denominada “Verdade Celestial”, sediada na pacata localidade de Brejos do Assa no concelho de Palmela, estaria associada à prática de crimes de abuso sexual de menores, era minha convicção que tal realidade tinha só cabimento no distante e muito particular contexto norte-americano. Longe estava de imaginar que neste país de brandos costumes à beira mar plantado, mentes perversas pudessem reproduzir tais práticas de forma tão brutal e camuflada, a ponto de só uma denúncia de um dos seus membros, ter permitido o início de uma investigação criminal que redundou na acusação do seu alegado líder, um auto intitulado psicólogo e treinador de futebol de formação de nome Rui Pedro, bem como de quatro outros homens e três mulheres por centenas de crimes de abuso sexual de crianças, crimes de violação agravada, actos sexuais com adolescentes, lenocínio agravado e ainda, de pornografia infantil agravada, que terão sido praticados entre 2013 e 2015. Ontem, o Tribunal de Setúbal condenou Rui Pedro, o principal arguido no processo, a uma pena de 23 anos de prisão .

Num contexto em que as estatísticas nos indicam um crescendo preocupante no que concerne aos números de inquéritos crime instaurados pela prática do crime de abuso sexual de crianças em Portugal, quase mil em 2017, e o ano ainda não terminou, este caso da seita de Palmela assume contornos peculiares, que o tornam singular no panorama criminal português. Tal como os norte-americanos acima referidos, Rui Pedro terá assumido o papel de representante de Deus na terra, convencendo as suas viítimas de que que o seu envolvimento sexual representaria um acto divino de purificação. Alegadamente, sob o pretexto de consultas de psicologia a cinco euros e da organização de actividades de tempos livres na sua casa, o arguido e alguns dos seus cúmplices, terão atraído a este “engodo”, nove crianças que terão sido vítimas de mais de 400 crimes de abuso sexual. Tal como os melhores “guros” das seitas americanas, nem os filhos menores do principal arguido terão escapado aos “ritos” perversos desta “seita”.

O que mais me impressionou neste caso agora julgado em primeira instância, foi a facilidade com que este esquema resultou e a forma aparentemente fácil com que as vítimas e, sobretudo os seus pais, confiaram no engodo da “seita religiosa”, a ponto de só uma denúncia de um dos cúmplices feita em 2015, ter permitido o início da investigação criminal. A confirmar-se em sede de recurso a decisão do Tribunal de Setúbal, certamente que este caso passará a ser um case study nos cursos de criminologia, sobretudo no plano da psicologia forense e do profiling criminal, em função daquilo que o próprio tribunal considerou ser o perfil do principal arguido, nomeadamente quanto à sua capacidade de manipulação das vitimas e ausência de qualquer empatia pelas mesmas, nomeadamente em relação aos seus próprios filhos, também eles, vitimas destes crimes. 

E por falar em vítimas, é preciso não esquecê-las. Ao mal irreparável do crime, sucede o irreparável da sua participação activa no processo judicial, facto que, muitas vezes ainda agrava o seu sofrimento, pela solicitação repetida da reconstituição dos factos perante os órgãos de polícia criminal, peritos médicos, autoridades judiciárias e magistrados judiciais. O processo penal neste tipo de crimes encerra um conjunto de exigências para os menores vítimas de abuso sexual que são também fonte de stress e que agravam os factos que lhe deram origem. Compete ao sistema judicial criar condições para minorar o esforço das vítimas durante a investigação criminal e durante o processo judicial subsequente. Sendo o relato testemunhal das vítimas elemento chave para a prova dos crimes, importa tomar as devidas precauções para evitar os riscos de uma vitimização secundária e do trauma a que estas crianças são expostas quando têm de expor a sua intimidade perante estranhos.

Se já foi traumatizante para estas crianças terem sido obrigadas a participar nos rituais perversos da seita “Verdade Celestial”, também certamente foi muito difícil ultrapassarem o ritual próprio inerente ao funcionamento da justiça. Compete ao Estado criar “rituais judiciais”, que não só permitam punir exemplarmente os responsáveis pela prática destes crimes, como permitam “salvar a alma” dos menores que caíram nas malhas dos “profetas do mal” que por aí circulam disfarçados de ovelhas.

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