O declínio do público: uma doença vulgaríssima

O declínio do público é como as doenças raras: cada caso é um caso, mas todos juntos afetam uma porção considerável da comunidade politicamente organizada.

Um facto menosprezado sobre as doenças raras é que elas são, de facto, muito vulgares. Ou melhor, cada doença rara afeta um número muito reduzido de indivíduos (entre um em cada mil e um em cada 200 mil, dependendo da definição), mas como há milhares de doenças raras, todas elas juntas acabam por afetar uma parte muito significativa da população: os 800 mil portugueses que costumam ser apresentados como afetados por uma (ou mais) doenças raras, ou os 20 a 30 milhões de europeus, ou os 300 milhões de humanos em todo o mundo.

Ninguém de bom senso põe em causa, portanto, a importância de existir em Portugal uma associação como a Raríssimas, agora muito seriamente abalada desde que uma reportagem da TVI revelou inúmeras práticas de má gestão, prepotência e autoritarismo da sua presidente. Ninguém nega a dimensão específica e pessoal dessas práticas, algumas das quais provavelmente criminosas. Felizmente, toda a gente concorda que é preciso não confundir o valor da associação com a deturpação desse valor pelos atos da sua presidente.

Mas se é verdade que os atos pertencem a quem os pratica, é também muito difícil negar a existência de uma cultura que enquadra esse atos, e outros como eles. Eu chamar-lhe-ia a cultura do declínio do público. Esse declínio vai para lá das relações entre o setor do estado e o setor privado e ameaça também o chamado terceiro setor (das ONGs, do voluntariado e do mutualismo). Esse declínio é o resultado de muitos anos de um discurso político que justificou a demanda de um “estado mínimo” e tentou fazer transitar grande parte das funções de segurança e apoio social para entidades assistencialistas privadas. Mas não é só isso.

Num livro chamado Decline of the Public que comentei nestas páginas há já vários anos, o politólogo (e ex-político) britânico David Marquand explica que uma noção saudável do domínio público depende de duas condições. A primeira é que “o domínio público tem de ter um tipo de cultura distinta no que diz respeito às suas regras e às suas decisões… uma cultura na qual os direitos da cidadania valem mais do que o mercado, por um lado, ou os laços de clã ou parentesco, por outro”. A segunda é que a noção do público está sempre em risco: “os seus valores e práticas não emergem naturalmente, e precisam por isso de ser aprendidos” e continuamente defendidos por toda a cidadania. É para isso que supostamente serve a política: estes valores e estas práticas devem ser civicamente partilhados. Mas nos últimos anos, eles têm sido sistematicamente minados por uma cultura privatista no mercado e por um estado tido por austeritário ou mínimo mas paradoxalmente hiper-intervencionista quando se trata de despachar recursos ou funções para entidades que depois controla mal, pouco ou nada.

Como se resolve isto? Não certamente confundindo o domínio público com um domínio exclusivo do estado. Mas é imprescindível que o estado fiscalize muito mais e de forma mais sistemática aquilo que dá aos outros para fazerem com o dinheiro de todos. E é essencial que a sociedade civil se torne mais exigente consigo mesma: é indesculpável que tanta gente aparentemente séria tenha aceitado fazer parte dos órgãos da Raríssimas sem jamais se ter dado ao trabalho de — simplesmente — fazer o seu trabalho lá dentro.

Apesar de tudo, o sistema de segurança lá acabou por funcionar através de denúncias anónimas, uma reportagem na televisão e um inquérito do Ministério Público. Esperemos que não seja demasiado tarde para salvar o trabalho meritório da Raríssimas. Mas não nos enganemos, há muito mais disto por aí. O declínio do público é como as doenças raras: cada caso é um caso, mas todos juntos afetam uma porção considerável da comunidade politicamente organizada.

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